Há um vazio estranho que nasce quando o copo cai da rotina.
Não é só abstinência — é ausência. O álcool preenchia o tempo, a conversa, o gesto automático de abrir a geladeira ao fim do dia. Parar de beber não é apenas largar uma substância; é desmontar um ritual. É olhar para o relógio e perceber: agora há horas demais.
Muitos alcoolistas não recaem por vontade de beber — recaem por não saber o que fazer com o tempo sóbrio. A dependência não é feita apenas de moléculas, mas de hábitos, cenários e repetições. Beber era o enredo. E sem o copo, o que resta?
O SILÊNCIO DEPOIS DO BARULHO
O álcool silencia o ruído interno. Quando ele some, o mundo volta a falar — e grita. O corpo sente falta da dopamina rápida, o cérebro implora por distração, e o tédio se confunde com desespero.
Mas é nesse desconforto que mora o primeiro ensaio de liberdade: suportar o silêncio.
Muitos confundem sobriedade com calmaria, mas no início ela é barulhenta. É o retorno de vozes, lembranças e perguntas que o álcool abafava.
Não é fácil. O alcoolismo reorganiza a vida inteira ao redor do copo. Quando o copo some, é como desmontar uma casa que já não faz sentido, mas ainda é o único lugar conhecido.
REAPRENDER O TEMPO
O alcoolista precisa reaprender o que é tempo. O tempo sem álcool é elástico, expandido. Antes, um gole resolvia uma tarde. Agora, cada minuto tem corpo, peso e presença.
E há que se criar novos rituais — não de fuga, mas de presença.
• Manhãs: redescobrir o café sem ressaca, o cheiro do banho, o corpo limpo de toxinas.
• Tardes: transformar o intervalo entre vontades em pausas criativas: ler, caminhar, desenhar, escrever.
• Noites: fazer do sono um sagrado descanso, e não um apagão químico.
A mente sóbria, no início, é inquieta. Procura algo para se agarrar. A dependência era uma âncora — pesada, mas conhecida. Agora é preciso fincar novas raízes: vínculos, projetos, corpo em movimento.
O PERIGO DO VAZIO
Muitos recaem não por fraqueza, mas por não suportarem o vazio que o álcool deixava. É o que Winnicott chamaria de “angústia do desamparo”: a dor de existir sem substitutos.
Mas o vazio não é o inimigo — é o terreno onde o novo nasce.
No início, ele é árido. Depois, vira espaço fértil.
Há quem tente preencher esse buraco com comida, redes sociais, relacionamentos intensos, trabalho demais. É o mesmo movimento de fuga, só que com nova embalagem.
Mas a sobriedade verdadeira começa quando você permite que o vazio respire.
O REENCONTRO COM O PRAZER
A vida sem álcool é redescoberta do prazer genuíno — aquele que não cobra ressaca emocional.
O prazer de estar inteiro.
O prazer de lembrar da noite seguinte.
O prazer de rir com lucidez.
O corpo precisa se reeducar: sentir dopamina na leitura, serotonina no exercício, endorfina no sol da manhã. Aos poucos, o cérebro aprende que há prazer na realidade — e que o real pode ser suportável, até belo.
Nietzsche dizia que “é preciso ter caos dentro de si para dar à luz uma estrela dançante.”
A sobriedade é isso: atravessar o caos interno até descobrir que o brilho que você buscava na garrafa sempre esteve dentro de você.
O PERIGO DOS GATILHOS
Gatilhos emocionais não são inimigos, são mapas.
O desejo de beber vem como um sopro, mas ele traz mensagens. Pergunte-se: o que dentro de mim está pedindo anestesia agora?
Às vezes, é solidão. Às vezes, cansaço. Às vezes, só o desejo de não sentir.
Identificar o gatilho é como acender a luz num quarto escuro. O impulso perde força quando é nomeado.
E cada vez que você atravessa o gatilho sem beber, seu cérebro se reconfigura — a dopamina volta a se alinhar com o que é real, e não com o que é químico.
PEQUENAS CONSTRUÇÕES
A sobriedade se sustenta em pequenas obras diárias.
Cuidar da casa. Fazer comida. Escrever num diário. Regar uma planta.
Esses gestos simples substituem o ato automático de abrir a garrafa.
É no pequeno que se reconstrói o grande.
O alcoolismo destrói o tempo. A sobriedade o devolve — mas é preciso aprender a habitá-lo.
A rotina vira a ponte entre o vício e a liberdade.
O SENTIDO
Frankl dizia que o ser humano é capaz de suportar qualquer coisa, desde que encontre um sentido.
No alcoolismo, o sentido era beber. Na sobriedade, o sentido é viver.
Mas viver dá trabalho.
É construção, não anestesia.
Quando você para de beber, descobre que não era o álcool que preenchia o tempo — era você quem o fazia suportável.
Agora, o tempo devolve o que antes o álcool roubava: lucidez, memória, presença, conexão.
TRANSFORMAR O TEMPO EM VIDA
Não é sobre nunca mais querer beber. É sobre querer estar vivo demais para precisar disso.
Quando a sobriedade amadurece, o tempo deixa de ser inimigo.
Cada hora sóbria é uma chance de se redescobrir — de rir, chorar, criar, falhar, começar de novo.
A recaída não é o fim, mas um lembrete: você ainda está aprendendo a habitar o seu tempo.
E o tempo, agora, é seu.
Rafa Pessato
Especialista em Autoconhecimento e Comportamento











