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CUIDADO PARA NÃO TROCAR DE VÍCIO: por que redes sociais e jogos podem ser tão viciantes quanto o álcool

Você já sentiu, dentro de si, um clamor que não se cala — uma sede antiga, primitiva, que pede algo mais forte do que a vida te oferece? Quando o álcool domina o corpo, ele leva embora a lucidez, mas oferece em troca uma névoa anestésica: o sabor do esquecimento.

Mas então, no silêncio do quarto, surge outra promessa: “só mais um scroll”, “só mais uma fase”. E você mergulha. Você troca a taça por uma tela, o gole por o click, o cálice por o clique.

O vício muda de forma, mas conserva o mesmo espírito voraz: ele exige alimento. Ele quer saciar o buraco negro dentro de você. Ele sorri, disfarçado de entretenimento, e te embala com promessas de conexão, diversão, pertencimento. Mas no fundo ele te rouba de novo — dessa vez, de tempo, de presença, de sentido.

Você não deixou o vício — apenas mudou o objeto dele.

 

O ESPELHO DO DESEJO: O QUE BUSCÁVAMOS NO ÁLCOOL

Quando alguém se torna dependente do álcool, não é (ou não é só) o álcool que deseja — é o alívio. É a fuga, o silêncio interno, a dor que não se sustenta. É o querer não sentir, não lembrar, não confrontar. É também o desejo de se dissolver — de se desfazer da angústia.

Essas mesmas raízes podem brotar dentro da rede social ou do jogo: o desejo de escapar, de apagar a sensação de inadequação, de encontrar dopamina rápida, de preencher o vazio intrínseco. O feed ofertando elogios, curtidas, aplausos silenciosos; a vitória virtual substituindo a sensação de conquista emocional.

Nietzsche nos recorda que o homem é uma corda estendida entre o animal e o além. Ao trocar o álcool por redes sociais, você ainda caminha sobre essa corda — mas agora com novas amarras. Kierkegaard falaria do desespero que nasce quando não somos nós mesmos — e o vício social é um curativo para esse desespero: vestir uma máscara digital para evitar o rosto nu do ser.

A dependência, seja química ou comportamental, quer calar o grito interno: “quem eu sou, sem desempenho?”

 

GATILHOS EMOCIONAIS: ISCAS INVISÍVEIS

No alcoolismo, temos gatilhos: uma sala escura, um convite, a paisagem de uma noite triste. Na dependência digital ou de jogos, os gatilhos são sutis: uma notificação, um tique visual do celular, o tédio diante de um silêncio.

Esses gatilhos emocionais — a solidão, a dor, a raiva, a frustração — continuam vivos. Só mudam de âncora. No fundo, você procura algo que apague o ruído mental. Você quer reafirmar a sensação de existência: “eu estou aqui, vejam-me, notem-me”.

E o algoritmo entende. Ele antecipa. Ele sugere. Ele empurra conteúdos que você ama — conteúdos que te seguram. Ele alimenta o ciclo.

A recaída, então, não é para um gole, mas para o deslizar infinito.

 

A NOITE DO MUNDO DIGITAL: PERDA DE FRONTEIRAS

Num mundo ideal, você entra numa rede social ou jogo e sai quando quiser, como quem entra numa festa civilizada. Mas a realidade é que as fronteiras se dissolvem: você entra à noite e sai de madrugada. Você vai “dar uma olhadinha” e desperta horas depois, fatigado, desorientado, com o coração mais seco.

Isso lembra o enredo de Clarice Lispector: uma personagem que se suspende em sua própria vida, observando-se viver como quem vê de fora. Ao ver o tempo escorrer pelas mãos, você se estranha de si mesmo.

E aí você se pergunta: quando foi que perdi o controle? Quando foi que a máquina me domina mais do que eu a ela?

Você não é vítima passiva — mas talvez tenha cedido ao encantamento do espelho digital, que sempre oferece um reflexo sedutor, mas nunca completo.

 

O DUPLO CONFRONTO: ÁLCOOL E DIGITAL EM CONFRONTO

Imaginemos dois inimigos no seu quartel interno: o álcool e a tela. Ambos disputam o mesmo terreno — sua alma. Você já enfrentou um — talvez com ajuda, talvez com dor. Agora surge o outro, sorrateiro, silencioso. É uma luta dupla.

Se você permanecer atento, verá que muitos trocam uma cela por outra: saem do bar, mas entram em salas de chat; deixam o copo, mas mergulham no feed. E questionam: “estou em sobriedade ou só mudei o adereço da dependência?”

Frankl diria que a liberdade não é só a ausência de substâncias, mas a presença do sentido. Se você migra do álcool para o digital vazio, permanece preso — só que agora o cárcere é ainda mais invisível.

Winnicott falava da importância do espaço transicional: um meio-termo entre mundo interno e externo, um espaço seguro para existir. O vício elimina esse espaço — substitui-o por uma evasão constante.

A autenticidade, então, exige uma sobriedade dupla: do álcool e da imagem, da tela e do controle compulsivo.

CAMINHOS POR GESTOS SUTIS

Este texto não te dará um manual com dez passos — porque sua alma não pode ser guiada por uma receita. Mas posso te mostrar veredas em que você possa caminhar — com liberdade — rumo à redescoberta de si mesmo.

Silêncio navegável

Em vez de ligar o celular automática e compulsivamente, crie pausas não tecnológicas: 5 minutos de olhos fechados, ouvir o som da sua respiração, sentir o peso do corpo na cadeira. Deixe a urgência digital esperar.

Mapear seus gatilhos emocionais

Observe: quando você vai “ao app” ou “ao jogo”, qual sensação antecede? Tédio? Culpa? Solidão? Titanismo interior? Registre mentalmente ou num caderno. Consciência é o primeiro passo de liberdade.

Transição lenta, com ritmo humano

Se você abolir tudo de uma vez, pode explodir. Comece com pequenas interrupções — desligar notificações, períodos livres de tela diária, janelas sem redes sociais. Recupere a cadência do tempo orgânico.

Criar espaços de “existência pura”

Ler um livro denso, ficar em contato com a natureza, desenhar, escrever sem propósito, meditar. Atos que não acionam recompensas externas imediatas, mas nutridores do profundo.

Fraternidade e registro

Compartilhar o peso com outros que caminham. Ir além do “eu consegui” — dizer “hoje foi difícil”. E também: manter registro do avanço — mas de forma poética, fria ou quente, como sua alma preferir.

Lembrar o sentido diariamente

Fazer pequenas perguntas: por que estou evitando esta sensação? O que estou querendo apagar? Quem sou além da compulsão? Perguntas que te devolvem ao centro.

Perdoar a recaída, restaurar a aliança

Se um dia você deslizar — para a bebida ou para a tela — não finja que “desistiu da sobriedade”. Há o caminho de retorno. A dependência é convidada presente para tentar te seduzir — lembre-se: você não é sobre resistir, mas sobre se reencontrar.

 

A ESPERANÇA ENCARNADA

Ao final desta leitura, gostaria que você sentisse — não apenas com a cabeça, mas com o coração — que há um dia adiante em que você é menos objeto de compulsões e mais sujeito de sua própria narrativa.

A sobriedade não é um regime frio: ela é uma vivência incendiada por sentido. É olhar para dentro e reconhecer que você é esse corpo-templo, essa chama inquieta, essa pele que vibra no mundo.

Talvez você mantenha uma relação delicada com álcool, talvez já esteja em recuperação, talvez hoje lute contra o impulso de abrir o app. Mas a chama da autenticidade pode arder maior do que qualquer névoa do vício — e ela precisa de você atenta, gentil, firme.

Você não precisa aceitar trocar um vício por outro. Você pode resgatar sua vida do acorrentar sutil da tela, da bebida, do impulso. Você pode, dia a dia, reconhecer o que fumega sob sua pele — e escolher a liberdade do sentido, a sobriedade da presença, o enredo vibrante de sua própria alma.

Que você reinstale, no âmago do seu ser, uma aliança: com a verdade, com a dor, com a luz que pulsa no mais profundo.

Você não está destinado a ser prisioneiro. Você pode construir — com falhas, quedas, cicatrizes — uma morada de sobriedade verdadeira.

 


Rafa Pessato

Especialista em Autoconhecimento e Comportamento

rafapessato.eu