Há quem pense que parar de beber é um ato de heroísmo.
“Eu admiro sua força de vontade”, dizem, como se a sobriedade fosse resultado de um músculo invisível que alguns têm e outros não.
Mas quem já tentou parar sabe: a força de vontade é volátil. Surge como uma maré — intensa, promissora, mas passageira.
No início, ela empurra. Depois, esgota. E é justamente nesse esgotamento que muitos voltam ao primeiro gole, à primeira fuga, à velha promessa de “amanhã eu recomeço”.
O alcoolismo é uma doença crônica, progressiva e multifatorial, reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) desde 1952.
Não é fraqueza, nem falta de caráter.
Mas também não é apenas uma questão de “vontade”.
É uma desordem que envolve bioquímica cerebral, condicionamentos emocionais, histórias familiares, crenças e vazios existenciais — e por isso não se vence com mera obstinação, mas com autoconhecimento e reconstrução interior.
A ILUSÃO DA FORÇA DE VONTADE
A força de vontade é um combustível de curta duração.
Ela nasce de uma decisão racional — “eu quero parar”, “eu preciso mudar”, “dessa vez vai” —, mas o alcoolismo é irracional. Ele mora nas frestas do inconsciente, nos automatismos de quem bebe sem pensar, nos circuitos cerebrais de recompensa que o álcool sequestra com facilidade.
Estudos do Instituto Nacional de Abuso de Álcool e Alcoolismo dos Estados Unidos (NIAAA) mostram que o álcool altera regiões do cérebro responsáveis pela tomada de decisão, controle de impulsos e regulação emocional. O córtex pré-frontal, sede da razão, fica enfraquecido, enquanto o sistema límbico — dominado pelo prazer imediato — assume o comando.
É por isso que o dependente, mesmo consciente das consequências, repete o comportamento.
A força de vontade tenta governar o barco, mas o leme está nas mãos do desejo.
Nietzsche escreveu que “o homem não é um ser racional, mas um ser que quer”.
E querer, para o alcoolista, é uma tormenta: quer parar, mas também quer anestesiar. Quer viver, mas teme sentir. Quer ser livre, mas teme o vazio que a liberdade traz.
A força de vontade se sustenta enquanto há motivação; mas quando o sofrimento, o tédio ou o gatilho emocional surgem, ela cede.
E o que sobra é o ciclo conhecido: recaída, culpa, tentativa de controle, autodepreciação e repetição.
FORÇA EXISTENCIAL: A ENERGIA QUE VEM DO SENTIDO
Viktor Frankl, psiquiatra austríaco e sobrevivente de campos de concentração, dizia que o ser humano suporta qualquer “como” se tiver um “porquê”.
Essa é a força existencial — aquela que nasce do sentido, não do impulso.
Ela é o oposto da força de vontade porque não depende do humor do dia, mas de um significado profundo que sustenta o viver.
Enquanto a força de vontade diz “eu vou parar de beber porque preciso”, a força existencial diz “eu quero viver plenamente, e para isso não cabe mais a bebida”.
Percebe a diferença?
Uma é imposição. A outra é transformação.
Quando o alcoolista descobre um propósito maior — seja a presença real com os filhos, a lucidez no trabalho, a liberdade de acordar em paz, a dignidade de olhar-se no espelho —, o desejo de beber começa a perder o poder.
Não por repressão, mas por substituição: o prazer de viver torna-se mais forte que o prazer químico.
É nesse ponto que a sobriedade deixa de ser luta e se torna decisão.
Uma decisão que se renova todos os dias — não por obrigação, mas por amor-próprio.
AS FORÇAS DE CARÁTER: O QUE REALMENTE SUSTENTA A SOBRIEDADE
A psicologia positiva, liderada por Martin Seligman e Christopher Peterson, desenvolveu um estudo sobre forças de caráter — 24 virtudes universais que representam os pilares do que temos de melhor.
Entre elas, estão a coragem, a gratidão, a persistência, o autocontrole, a honestidade, a esperança, a espiritualidade, a capacidade de perdão e o amor.
Essas forças não são talentos, mas potências humanas que se fortalecem com a prática. E são elas, mais do que a força de vontade, que ajudam alguém a se manter sóbrio.
Um alcoolista que desenvolve autocontrole aprende a observar o impulso antes de agir. Com autenticidade, para de viver personagens e encara sua verdade. Com coragem, enfrenta o desconforto emocional sem fugir para a garrafa. Com gratidão, ressignifica o passado e encontra beleza no cotidiano simples. Com esperança, acredita que pode mudar, mesmo após inúmeras recaídas.
Essas forças são internas, silenciosas, duradouras — e se tornam um escudo contra os gatilhos emocionais.
São o que Frankl chamaria de “atitude diante do inevitável”: não controlar o mundo, mas escolher a postura diante dele.
O FALSO HERÓI E O VERDADEIRO FORTE
Há um equívoco cultural em torno da ideia de “força”. O verdadeiro forte não é o que aguenta beber mais, mas o que suporta sentir. Não é quem reprime o desejo, mas quem o transforma. Não é quem finge controle, mas quem aceita ajuda.
O alcoolista, ao buscar sobriedade, não precisa ser um herói — precisa ser humano. A força que liberta é vulnerável, não arrogante. É aquela que reconhece: “eu não controlo a bebida”.
A dependência se alimenta do isolamento. A recuperação floresce no vínculo, não apenas com o outro, mas consigo mesmo.
Grupos de apoio, psicoterapia, espiritualidade, novas rotinas, leitura, meditação, exercício, sono regular — tudo isso são práticas que ativam e fortalecem as forças de caráter.
Não é força de vontade. É coerência entre o que se sente, o que se pensa e o que se faz.
O CÉREBRO SE RECONSTRÓI, O SER SE REENCONTRA
Neurocientificamente, a boa notícia é que o cérebro tem plasticidade (capacidade de ser moldado).
Com o tempo de abstinência e novos hábitos, o córtex pré-frontal recupera funções, e a capacidade de decisão e regulação emocional volta a se fortalecer.
O prazer químico é substituído por prazer vital — o prazer da presença, da consciência, da autenticidade.
Mas há um período de travessia, e nele mora o risco e a graça. A graça de se reencontrar. De perceber que a força que se buscava na garrafa sempre esteve dentro. A força de permanecer mesmo quando a vontade vacila.
ENTRE O QUERER E O SER
A força de vontade quer vencer.
A força existencial quer viver.
E as forças de caráter sustentam o viver.
A sobriedade não é um prêmio por esforço. É uma consequência de uma vida que começou a se alinhar à verdade.
Quem busca apenas parar de beber, luta com o sintoma. Quem busca compreender por que bebia, liberta-se da causa.
E não é sobre “nunca mais beber”. É sobre “nunca mais precisar beber”. E isso só acontece quando o sujeito volta a se pertencer. Quando o corpo não é mais refém da química. Quando a mente não é mais sequestrada pela culpa. Quando a alma não é mais anestesiada pelo medo.
A força de vontade é útil para começar. Mas é a força de caráter que o mantém de pé. E é a força existencial que o faz caminhar com leveza. Porque ser mais forte que a bebida não é resistir ao copo — é existir por inteiro.
Rafa Pessato
Especialista em Autoconhecimento e Comportamento











