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COMO SABER SE VOCÊ ESTÁ ALÉM DO “BEBER SOCIALMENTE”

O INÍCIO DO QUESTIONAMENTO

Talvez você esteja lendo este texto com um copo de bebida ao lado. Ou talvez já tenha decidido “dar um tempo”, mas ainda escute aquela voz que diz: “não é pra tanto”.

Você ainda se considera uma pessoa que bebe “socialmente”. Trabalha, paga contas, cumpre obrigações.

Mas há algo que começa a incomodar — uma sensação estranha, quase sussurro: “será que eu ainda estou no controle?”

Essa pergunta, sozinha, já é um sinal importante. Porque quem está em equilíbrio raramente se pergunta se está perdendo o controle. Quem se pergunta, já começou a ver o copo de outro ângulo.

 

O MITO DO “SOCIALMENTE”

Durante décadas, a cultura do álcool foi romantizada como parte da vida adulta. Brindar virou sinônimo de sucesso, relaxar virou desculpa, e “socializar” passou a significar beber.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), não existe nível seguro de consumo de álcool. Mesmo em pequenas doses, o álcool é classificado como substância psicoativa e carcinogênica do grupo 1, ao lado do tabaco e do amianto (OMS, Global Status Report on Alcohol and Health 2024).

Isso não significa que todo gole gera dependência — mas sim que toda ingestão altera o sistema nervoso central, modifica percepções e, em certas pessoas, ativa circuitos de compulsão.

O problema é que a fronteira entre o uso “social” e o uso “emocional” é tênue.

E quanto mais o álcool é usado para regular o humor, aliviar o estresse ou escapar de si, mais ele se infiltra em lugares onde antes havia presença.

 

O TERRENO INVISÍVEL DA DEPENDÊNCIA

A dependência não começa no bar. Começa no momento em que o copo passa a significar alívio.

A neurociência mostra que o álcool ativa a liberação de dopamina — o neurotransmissor do prazer — de forma artificial e intensa. O cérebro aprende que beber significa “bem-estar imediato” e, com o tempo, reduz a produção natural de prazer sem a substância.

O que antes era escolha vira necessidade.

O Instituto Nacional sobre Abuso de Álcool e Alcoolismo dos Estados Unidos (NIAAA) define o Transtorno por Uso de Álcool (TUA) como “um padrão problemático de consumo que leva à angústia ou prejuízo clínico significativo”.

Em 2023, o Ministério da Saúde do Brasil estimou que cerca de 4 milhões de brasileiros apresentam sintomas compatíveis com dependência alcoólica.

Segundo a Fiocruz, o álcool é responsável por cerca de 55% dos casos de internação por dependência química no SUS.

Mas a maioria não se vê como dependente. Se enxerga como “pessoa que só precisa relaxar”.

 

QUANDO O CORPO COMEÇA A AVISAR

O corpo fala antes da consciência.

Você pode notar mudanças sutis — sono agitado, irritabilidade ao ficar sem beber, memória embaralhada, fadiga constante, falta de prazer nas coisas simples.

A ressaca, antes física, passa a ser emocional: culpa, vazio, ansiedade, vergonha.

E o pior: a culpa vira gatilho para beber de novo. É um ciclo.

A dependência de álcool se caracteriza por sintomas que se repetem:

  • Tolerância crescente (precisa de mais para sentir o mesmo efeito)
  • Abstinência (tremores, insônia, ansiedade sem beber)
  • Perda de controle (bebe mais do que planejava)
  • Persistência (continua apesar dos prejuízos)
  • Tempo gasto planejando, consumindo ou se recuperando
  • Redução de outras atividades que antes davam prazer

 

Esses sinais não surgem de um dia para o outro.

Mas, se você reconhece mais de um deles, é hora de prestar atenção.

 

DO USO AO ABUSO: A LINHA QUE SEPARA O PRAZER DA PRISÃO

Uso social

→ prazer ocasional, sem prejuízo funcional

Uso de risco

→ aumenta frequência, busca compensar estresse

Abuso

→ repetição, ressacas emocionais, conflitos pessoais

Dependência

→ perda de controle, abstinência, culpa, isolamento

(Fonte: OMS, NIAAA, Fiocruz, 2023)

 

O DISFARCE DA FUNCIONALIDADE

Uma das maiores ilusões da dependência é a “funcionalidade”.

Você continua cumprindo prazos, cuidando da casa, vivendo “normalmente”.

Mas, por dentro, há rachaduras.

O alcoolista funcional é aquele que ainda parece bem — e por isso, raramente é confrontado.

É a pessoa que “aguenta muito”, que “sabe seu limite”, que “nunca falta ao trabalho”.

Mas a OMS alerta: quanto mais a dependência se esconde na rotina, mais difícil é percebê-la.

A funcionalidade não é ausência de doença.

É só uma forma sofisticada de negação.

OS GATILHOS EMOCIONAIS: O ÁLCOOL COMO ANESTESIA

Toda dependência é uma tentativa de regular o insuportável.

Para alguns, o álcool silencia o medo. Para outros, o tédio, a solidão, a cobrança, o cansaço.

Mas o que ele anestesia, volta.

E quando volta, volta mais alto.

O álcool promete alívio, mas entrega prisão.

Ele tira a dor, mas também rouba o prazer genuíno.

É como se colocasse um filtro sobre a vida — e de tanto filtrar, ela perde a cor.

 

QUANDO ME PREOCUPAR DE VERDADE

Essa é a pergunta que mais ouço: “Quando é hora de me preocupar?”

E a resposta é simples e dolorosa: Se você chegou até aqui, já é hora.

Quem lê textos sobre controle de consumo, quem busca sinais, quem começa a observar o próprio padrão — já percebeu algo.

Não se trata de rótulo (“sou ou não sou alcoolista”), mas de honestidade: o álcool ainda cabe na vida que você quer viver?

De forma mais técnica, é considerado preocupante quando há:

  • Perda de controle: você planeja dois copos, bebe quatro.
  • Repetição do arrependimento: promete parar, mas volta.
  • Necessidade emocional: só relaxa com a bebida.
  • Impacto nas relações: conflitos, isolamento, culpa.
  • Mudança de tolerância: precisa de mais.
  • Esconderijo: mente sobre a quantidade, esconde garrafas.
  • Abstinência emocional: irritação, tristeza ou vazio sem beber.

Nenhum desses sinais precisa acontecer junto.

Mas um deles, repetido com frequência, já é motivo de atenção.

 

O QUE A CIÊNCIA SABE HOJE

A ciência do comportamento reconhece que o alcoolismo não é falta de caráter, e sim uma doença crônica, multifatorial e progressiva.

A predisposição genética responde por cerca de 50% dos casos (segundo o Instituto Nacional sobre o Abuso de Drogas, órgão oficial dos Estados Unidos – National Institute on Drug Abuse – NIDA, 2024).

O restante está ligado a fatores emocionais, culturais e ambientais.

Um estudo da Escola de Medicina de Harvard (2023) mostrou que o consumo de álcool ativa regiões cerebrais ligadas ao aprendizado e à recompensa — o mesmo circuito da dependência de cocaína e opioides.

Por isso, parar não é questão de força, mas de reconexão neural e emocional.

A abstinência é só o início. O verdadeiro processo é reconstruir o sentido da vida sem anestesia.

 

O QUE O ÁLCOOL FAZ COM SEU CÉREBRO

  • Córtex pré-frontal: reduz controle e planejamento
  • Hipocampo: prejudica memória e aprendizado
  • Amígdala: amplifica ansiedade e reatividade
  • Sistema límbico: busca prazer imediato
  • Cerebelo: afeta equilíbrio e coordenação

(Fonte: Harvard Medical School, Alcohol and the Brain, 2023)

 

SOBRIEDADE: O CAMINHO NÃO É CASTIGO

Muitos acreditam que sobriedade é sinônimo de privação. Mas, na verdade, é libertação da anestesia.

No início, tudo parece mais difícil — os dias longos, o tédio, as emoções cruas. Mas aos poucos, o corpo se reequilibra. O sono melhora, a pele muda, a mente clareia. A dopamina natural volta a fluir.

E com ela, vem o prazer genuíno: o cheiro do café, o riso de um amigo, o vento na pele. A sobriedade é, na essência, um reencontro com o real. E o real, quando olhado com coragem, é mais embriagante do que qualquer bebida.

 

A ESCOLHA DE OLHAR PARA SI

Reconhecer que algo está errado é o primeiro passo da coragem. Não se trata de abandonar o copo — trata-se de se escolher. De admitir que a bebida já não serve à vida que você quer construir. E que há vida depois da taça.

Viva, verdadeira, intensa — não anestesiada, mas sentida.

A decisão de buscar ajuda, seja terapêutica, médica ou espiritual, não é fraqueza: é autonomia emocional.

Porque o alcoolismo não tem cura definitiva — tem remissão sustentada.

E essa remissão começa com o gesto de olhar para dentro.

 

CICLO DE RECUPERAÇÃO EMOCIONAL

  1. Reconhecimento – “Algo não vai bem.”
  2. Aceitação – “Não sou fraco; estou doente.”
  3. Ação – buscar apoio, mudar rotina, romper gatilhos.
  4. Reconstrução – resgatar vínculos e sentido.
  5. Manutenção – vigilância amorosa, um dia de cada vez.

(Fonte: Prochaska & DiClemente, Stages of Change, adaptado por OMS, 2022)

 

QUANDO O COPO VIRA ESPELHO

Chegar até aqui não é acaso. Talvez você tenha lido cada linha procurando uma confirmação — ou uma brecha para negar.

Mas a verdade está nas entrelinhas: se você se identificou, algo dentro de você já começou a mudar.

E essa mudança é o início da sobriedade. Não é a ausência de bebida, é a presença de si.

A dependência te fez buscar anestesia.

A sobriedade te convida a buscar sentido.

Entre uma e outra há um abismo — e também uma ponte. Essa ponte é feita de presença, de escuta, de coragem para sentir. Você não precisa cair para saber que pode voltar.

Basta olhar para o espelho antes do copo — e reconhecer quem ainda está ali.

 


Rafa Pessato

Especialista em Autoconhecimento e Comportamento.

rafapessato.eu