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COMO SUPORTAR O “MEDO” DO ÁLCOOL APÓS ANOS LONGE DA BEBIDA

O FANTASMA QUE PERMANECE

Quando se viveu por anos — ou décadas — sob o véu da bebida, há algo que permanece mesmo depois do último gole: o medo. Um medo que não nasce da culpa apenas, nem da vergonha única, mas da consciência de que a doença que é o Transtorno por Uso de Álcool (TUA) (também chamado de alcoolismo) não se encerra com a queda do copo vazio. 

Você descobriu que o álcool não era só um hábito, era um companheiro — e não escolheu bem-escolhido. Agora, está sóbrio ou caminhando para isso, mas sabe que o perigo de retorno está ali, latente, imóvel como uma sombra no fundo da sala quieta. E por isso surge o medo: “E se o vício voltar?” “E se bastar um momento de fraqueza?” “E se eu sentir vontade?”

Esse medo é legítimo. A dependência do álcool não se define apenas pela bebida; define-se por um funcionamento interno novo — cérebro e corpo alterados —, e esse funcionamento vive lembranças silenciosas, trilhas neuronais que ainda vibram se forem tocadas. 

O medo, portanto, não é fraqueza. É reconhecimento. É a mente dizendo: “Cuidado. Já fomos aqui.” E esse “aqui” não é apenas o copo; é a vertigem que precede o copo, o vazio que ele passou a preencher, o ruído que era silêncio, o calor que era solidão.

Como, então, viver esse dia após dia sem que o medo paralise — mas sem que ele seja ignorado como se nunca tivesse existido? Como abraçar a sobriedade com leveza, sem dar brechas ao álcool — e sem transformar a vida num cárcere de vigilância? É nessa interseção que vamos adentrar.

 

A DOENÇA QUE PERMANECE — ACEITAR O COMPANHEIRO INVISÍVEL

O primeiro livro de contas a pagar da sobriedade é este: alcoolismo é uma doença crônica.  A palavra “crônica” significa que não basta um tratamento curto, ou “já deixei para trás”. Há uma estrutura orgânica, psicológica e existencial envolvida. O corpo e o cérebro mudaram, o mundo interior se adaptou, a dependência moldou-se ao seu modo de existir — por isso a abstinência não anula o fato de que o risco permanece.

Quando se entende isso, o medo muda de forma. Não é mais “Se eu vacilar, está tudo perdido” — mas “Se eu negligenciar meu cuidado, o risco se ativa”. Virar soberano da própria vida não significa virar invulnerável; significa assumir a vigilância criativa, a atenção constante, não como punição, mas como zelo.

Essa compreensão devolve autenticidade: você não tem de fingir que a doença nunca existiu. Ela existe, com toda a sua história, e isso é parte da sua vida — não algo que precisa ser escondido ou negado. Reconhecer traz poder. Aceitar traz leveza. Porque uma sombra que não se nega deixa de crescer sem-sinal.

 

O MEDO E A VIGILÂNCIA — SEM TRANSFORMÁ-LOS EM TORMENTO

Viver com sobriedade é como caminhar por um terreno minado — não no sentido de terror, mas no sentido de atenção. Cada passo conta. E o medo, se bem entendido, pode ser guia e não carcereiro.

 

O que ativa o medo

  • Gatilhos emocionais: solidão, culpa, tristeza, esperança abortada, desejos que pareciam resolvidos e voltam a surgir. Estudos recentes mostram que a dependência ao álcool traz dissociação emocional, alteração da regulação emocional — o que torna os gatilhos internos mais ferozes. 
  • Gatilhos externos: festas onde há bebida, amigas/os que ainda bebem, “uma-dose-só” que nunca é “só”, locais que evocam o velho hábito. Reconhecer os gatilhos externos é metade do trabalho de preventiva. 
  • O compasso do tempo: como alerta de recaída, muitos relatos apontam que o risco reaparece mesmo depois de anos de sobriedade. A doença não dorme, ela repousa; e pode acordar se deixada sem escuta. 

 

Como cultivar vigilância leve

  • Transforme o “não posso beber” em “eu escolho viver”. A linguagem importa. Quando digo “tenho que vigiar”, sinto-me prisioneiro; quando digo “vigio porque escolhi viver”, sinto-me agente.
  • Reconheça o medo como aviso, não como sentença. Ele não está ali para castigar-lhe, mas para lembrar-lhe que você tem um motor interno que merece cuidado.
  • Crie pequenos rituais de encontro consigo: 5 minutos de respiração consciente ao acordar; um breve “check-in” emocional antes de sair de casa; escrever uma frase à noite (“hoje escolhi a vida”). A repetição traz leveza porque transforma vigilância em hábito.
  • Acolha a imperfeição. O medo pode surgir mais forte em dias de turbulência. Isso não significa fraqueza — significa que você é humano. O recurso, então, não é eliminar o medo, é aprender a conviver com ele.

 

UM DIA DE CADA VEZ — A TRAVESSIA LEVE DA SOBRIEDADE

“Sobriedade” pode soar austera. Mas a sobriedade não precisa ser seca de vida — muito pelo contrário: ela pode ser vibrante. A chave está em mudar o foco: da bebida para a vida, da ausência para a presença.

 

Do foco no álcool para o foco no eu

  • Em vez de pensar “Hoje não vou beber”, pense “Hoje vou viver”. A troca de verbo muda o eixo.
  • Pergunte-se: “O que eu gosto de fazer que não envolva bebida?” Pode ser caminhar, ouvir música, cozinhar, pintar ou conversar sem pressa. O vício roubou-lhe tempo de existir em função da bebida; a sobriedade devolve o tempo a si próprio.
  • Redescubra prazeres simples, porque a sobriedade revela que a intensidade não precisa vir de exagero — pode vir da atenção. Um café forte, um livro que ecoa, o verde das árvores que antes não percebíamos. A vida sóbria abre espaço para sutilezas que o álcool abafava.

 

O ritual do “dia de cada vez”

  • Hoje basta. A frase “um dia de cada vez” não é clichê; é sobrevivência. Porque o amanhã é incerto e o ontem, passado. O momento que importa é agora. Exercite-o.
  • Planeje-se: não no sentido rígido (“não beber nunca mais”), mas no sentido compassivo (“se surgir desejo, posso…”). Por exemplo: tenho uma lista de coisas que posso fazer ao invés de beber — ligar para amigo, caminhar, escrever. Esse anteparo reduz a ansiedade.
  • Celebre pequenos marcos: 24 h, 48 h, uma semana, um mês. Sem transformar em troféu gigantesco — apenas reconhecimento. O vício esquece que cada hora de sobriedade importa. Você lembra-lhe.
  • Tenha uma rede de escuta. A sobriedade exige pluralidade. Fale com quem entende, peça ajuda, divida fragilidades. A intersubjetividade humana é antídoto contra o isolamento que alimenta o vício.

 

AUTENTICIDADE NA SOBRIEDADE — MAIS DO QUE RESISTIR, VIVER

Resistir ao álcool é necessário; mas só resistir não sustenta uma vida. É preciso viver com autenticidade. E a autenticidade surge não quando você finge que nunca bebeu, mas quando reconhece que você bebeu — ou desejou —, e escolhe agora outro caminho.

 

Quem é você sem o copo?

Faça a pergunta sem pressa: “Quem sou eu quando não penso no álcool?” Quando o vício se torna ausente, sobra-lhe o eu que foi silenciado. Encontrar-se nessa sombra é missão de coragem.

Você pode descobrir que gosta de fotografar, ou de cozinhar para si, ou de caminhar sem destino, ou de ser presença para outro ser humano. Essas descobertas são parte do re‐encontro.

Lembre-se: a autenticidade não exige perfeição. Ela exige honestidade. Seja honesto com o que sente, com o que deseja, com o que teme. A bebida, no fundo, era fuga — da sensação de não-ser suficiente, da angústia de existir, do vazio que a vida às vezes pinta. A sobriedade é convite: encarar essas sensações, explorar-as, transformá-las.

 

A leveza não é ausência de dor

Há quem pense que ser sóbrio significa não sofrer mais. Não. Há dor, há saudade, há luta. Mas também há leveza — porque a leveza não é ausência de gravidade, é presença de sentido. Você pode levar a mochila do passado, mas não precisa carregá-la em corridas desesperadas.

Essa leveza se revela no cotidiano: acordar sem ressaca, olhar no espelho e não ter culpa ofensiva, permitir-se brincar, rir, chorar — sem que o álcool dite o ritmo. É redescobrir que a sobriedade é terreno fértil para viver — e não apenas sobrevivência.

 

SEM MANUAL, SEM PASSO-A-PASSO RÍGIDO — MAS COM PRESENÇA

Não ofereço aqui um checklist prescritivo. Não existe fórmula universal para viver sóbrio e leve, porque cada história de dependência tem suas curvas, seus desvios, suas cicatrizes. Mas há presença, escuta, escolha, e isso você pode praticar.

  • Escolha estar presente: no corpo, no sentir, no respirar.
  • Escute-se: o que sinto agora? Qual desejo real está aqui por trás da vontade de beber?
  • Re­-escolha: se o momento vier — e ele pode vir —, posso dizer “Não hoje. Hoje escolho…”
  • Permita-se errar: se houver recaída, não vire cenário de catástrofe. É um aviso. Levanta-se. Volta-se. A doença é crônica, não implacável. 

Ao caminhar assim, você constrói cada dia como terreno novo. Uma trilha construída com os pés e o coração. O medo permanece — ótimo — porque ele mantém a atenção viva. Mas, ao invés de se tornar grilhão, ele vira lembrete suave: “Olhe, estou aqui. Escolhi estar aqui.”

 

O DESTINO NÃO É NUNCA TER MEDO — É VIVER COM ELE E ALÉM DELE

Quando você chegou até aqui, já provou que é capaz. A sobriedade não é apenas ausência de álcool: é presença de vida. E essa presença exige que o medo seja reconhecido, não engolido; que os gatilhos sejam vistos, não negados; que a vigilância seja companheira, não carcereira.

Um dia de cada vez. Uma escolha de cada vez. Um reconhecimento de cada vez. Você não caminha para provar algo a ninguém — caminha para provar algo a si mesmo: que é mais do que a dependência, mais do que o copo, mais do que o hábito. Você é vida em processo, e essa é uma descoberta digna de celebração.

Hoje você escolhe viver. Amanhã — quando chegar — você vai escolher de novo. E assim vai se construir uma travessia que não ignora o medo, mas o incorpora. Que não vira mira fixa na bebida, mas mira aberta para a vida. Que não força a leveza, mas a permite.

Você está aprendendo a habitar o mundo sem o álcool como âncora — não porque trocou um vício por outro, mas porque reencontrou sua essência. E essa essência exige respeito, escuta, presença.

Que você ande com o medo, sim — mas ao lado da liberdade.

Que a sobriedade seja sua dança, e não seu cárcere.

Que a autenticidade seja seu combustível — e não apenas sua meta.

Com respeito à sua história, à sua jornada, à sua vitória de estar aqui. Venha um novo dia — e você estará presente para ele.

 


Rafa Pessato

Especialista em Autoconhecimento e Comportamento

rafapessato.eu