Quando a bebida ergue o véu e deixa à mostra o rio subterrâneo que corre por dentro: é aí que a dependência entra, silenciosa, sorrateira, convidando-te a fugir. E fugir de quê? Da dor, da solidão, da angústia de existir — ou, paradoxalmente, da própria vida. Para quem enfrenta o alcoolismo, a compulsão não é só o líquido que escorre pelo copo: é o impulso que diz “não suporto mais” ou “mereço outro gole”. Este texto é para você que já se viu preso nessa armadilha, que já chamou a bebida de amiga, de anestésico, de companheira de rota. Vamos mergulhar juntos — sem julgamentos — no terreno áspero da dependência, e espreitar aquelas pequenas frestas por onde a autenticidade e a sobriedade podem se insinuar.
O RIO SUBTERRÂNEO DA FUGA
Imagine um rio subterrâneo: corre sob dor, sombra e silêncio. A mente alcoolista constrói túneis para esse rio — caminhos de fuga que prometem alívio imediato, mas que se tornam labirintos. Quando o indivíduo se volta para a bebida, ou qualquer outro mecanismo de escape — o ato de beber, a repetição, a automedicação — ele busca interromper um “sentir demais” ou “não sentir nada”. É uma manobra existencial: fugir da exigência de “ser”, da tensão que acompanha o estar no mundo, da responsabilidade de existir. Aqui é o eco de Søren Kierkegaard quando fala da angústia da liberdade como um peso a carregar — e a bebida entra como atalho para aliviar esse peso.
Os dados nos lembram que não é raridade: segundo a World Health Organization, em 2019 estimava-se que cerca de 209 milhões de pessoas com 15 anos ou mais viviam com dependência do álcool. No Brasil, estudo de 2022 identificou que entre 87.555 adultos, 3,2 % dos homens eram bebedores pesados (≥ 50g/dia) — os padrões sociais conflituosos refletem esta realidade.
A dependência, portanto, não é só hábito ou falta de força de vontade: é labirinto cerebral, emocional, existencial. Há mecanismos neuronais, epigenéticos, genéticos — como visto em estudos que associam variações genéticas ao consumo, sensibilidade ao álcool. Mas também há narrativa: uma pessoa que bebe porque “algo dentro dói” e parece acreditar que apenas o gole anula esse ruído.
O ESCAPE QUE VIRA PRISÃO
Quando a mente alcoolista escolhe a rota de fuga, ela acende uma lâmpada azul-piscante: “isto me salva”. Mas essa rota tem efeito bumerangue — o alívio suposto traz sua própria cilada. Como disse Friedrich Nietzsche, “aquele que luta com monstros deve ver-se a si mesmo tornar-se monstro” — na dependência, o monstro pode ser aquela voz que exige: mais um, só mais um, não paro agora.
A compulsão desloca-se: não mais a bebida como invenção de festa, mas como resposta ao vazio, à culpa, ao sofrimento. A cada gole, o cérebro aprende que o alívio está “fora” — no copo, na bebida, no escape — e isso fragiliza a presença, a autenticidade, o ser-no-mundo. Mesmo que o desejo original fosse encontrar leveza, a consequência acaba sendo mais peso — recaída, vergonha, isolamento.
Há gatilhos emocionais: dor de perdas, humilhações, lutos não vividos, expectativas não cumpridas. A bebida aparece como colete salva-vidas, embora perfurado. E como colete salva-vidas furado, não cumpre o prometido. Surge a necessidade de mais, oferecendo menos. A sobriedade então parece monstruosa, porque exige encarar aquilo que se evitara: existir sem anestesia.
As estatísticas são cruéis: o consumo prejudicial de álcool esteve ligado a 2,6 milhões de mortes em 2019. No Brasil e no mundo, menos de 14% das pessoas com transtorno por uso de álcool têm algum contato com tratamento. Ou seja, muitos lutam sozinhos, no escuro.
QUANDO A FUGA APONTA PARA A LIBERDADE
Contudo — e este é o pilar da esperança — a rota de fuga, reconhecida, pode tornar-se rota de descoberta. Não pela fórmula pronta, mas pela experiência vivida. A autenticidade não é chegar a um “estado perfeito”, mas atrever-se a estar com o que é, com o que dói, com o que se quebrou.
Imagine o indivíduo alcoolista como um navegador que vive num mar agitado. A bebida parecia barco firme, mas era jangada. Agora, ele pode aprender a nadar, construir um novo barco — a sobriedade. Aprender a conviver com marés, com correntes, com o vento. A filosofia existencialista entra aqui: Viktor Frankl sugeria que o sentido surge quando enfrentamos o sofrimento não como algo a evitar, mas como porta de acesso ao que somos — ou o que podemos vir a ser.
A sobriedade traz uma espécie de embriaguez nova: a de estar presente. Não é líquido no copo — é presença no corpo, na mente, na alma. A dependência se rompe quando a pessoa entende que os “gatos-escapistas” (os escapismos: a bebida, o comportamento compulsivo) eram pistas que gritavam “algo me falta”. A tarefa é ouvir, sem fugir.
E ouvir exige vulnerabilidade: olhar o medo, o vazio, a culpa. Como Clarice Lispector escreveu, “o que é real está no mistério”. A dependência espreita no mistério — no que não se falou, no que não se permitiu sentir. A sobriedade é a coragem de entrar no mistério.
As soluções são práticas e implícitas: construir comunidade, desenvolver práticas de presença (meditação, respiração), reconhecer gatilhos emocionais antes que virem tragédia, escolher narrativas novas — “não sou o que fiz, sou o que escolho”. A recaída pode acontecer — e ela não é fracasso absoluto, mas sinal de que a rota antiga ainda habita dentro. Reconhecer a recaída, acolher-se, levantar-se: isto também é sobriedade.
AUTENTICIDADE NA SOBRIEDADE
Autenticidade não é ausência de dor — é conviver com ela. A mente alcoolista muitas vezes se esconde atrás da “persona” da festa, do “relaxa que eu bebo”, do “meu copo é meu amigo”. A sobriedade, ao contrário, propõe “mostrar quem eu sou, mesmo que seja custo”. Como Simone de Beauvoir indicaria: a liberdade exige responsabilidade — não para julgar, mas para escolher-se.
O dependente aprende que o escape automático era falso amigo. Que o vazio não vai embora com mais uma dose — apenas se transforma em outro tipo de vazio, maior, mais tortuoso. E então surge a pergunta: “Se não fujo, o que faço?” A resposta não vem pronta — mas começa a borbulhar quando se aprende a escutar o corpo, os pensamentos, as emoções. Gatilhos emocionais como ansiedade, tédio, raiva, culpa tornam-se sinais de trânsito, não explosões automáticas. Reconhecer: “isto é gatilho”. Escolher: “o que faço agora?”. Respirar. Ficar. Pedir ajuda. Escrever. Compartilhar.
A sobriedade inteligente é aquela que não busca perfeição — mas verdade. Ser autêntico é permitir-se imperfeito, vulnerável, humano. A dependência pode ter prometido controle — mas entregou desencontro. A sobriedade, ao menos, propõe encontro: com a vida, com os outros, com si.
“QUEM SOU EU SEM O COPO”
Se você lê isto como quem se olha no espelho quebrado — saiba: cada lasca reflete você. A rota de fuga da mente alcoolista existiu porque algo dentro buscava sobreviver, evitar, resistir. Agora você tem a chance de mudar o roteiro — não com pressa, não com autopunição, mas com presença. Deixar de buscar o copo como solução e começar a ver o copo como símbolo de fuga. Substituir a fuga pela pergunta: “O que eu sinto? O que eu quero? Quem eu sou sem esse copo?”.
Você pode aprender a navegar no mar — não para cancelar o vento, mas para dançar com ele. Sobriedade é dança, não marcha forçada. Autenticidade é caminhar com os pés no chão que cede, olhar para o céu que pesa, respirar o ar que sustenta. E cada escolha — por mais simples — conta: levantar-se do sofá, fechar o barulho da televisão, olhar o vazio da taça e proferir: “Hoje não. Hoje eu estou vivo”.
No fim, talvez o mais radical seja assumir: não será o copo que me salvará — serei eu, com falhas, medos, escolhas e regenerações. Porque a dependência me fez crer que a fuga era solução; a sobriedade me ensina que a presença é revolução.
Rafa Pessato
Especialista em Autoconhecimento e Comportamento











