Eu precisei perder o controle para começar a entender o que é liberdade.
Durante anos, o álcool foi meu idioma mais íntimo — a forma que encontrei de lidar com o que eu não sabia nomear. Bebia para silenciar o ruído interno, para sentir menos ou talvez sentir demais. O copo virou confessionário, fuga, disfarce e espelho.
Mas chega um dia em que o corpo não aguenta mais sustentar o que a alma não suporta. Foi quando parei. E, ao parar, percebi que a abstinência era apenas o ponto de partida. Parar de beber não é o fim de nada — é o começo de tudo o que se havia esquecido.
O verdadeiro trabalho começa quando o álcool sai de cena e o silêncio entra. Foi nesse vazio que eu criei o Método CER – Ciclo Essencial de Realização.
Não como fórmula, mas como mapa. Um modo de me reconstruir — e de ajudar outros a fazer o mesmo.
O CER nasceu da necessidade de transformar o caos em caminho.
Ele se apoia em três movimentos: Reflexão Integral, Reconexão Intencional e Realização Efetiva.
Três etapas que, juntas, formam um ciclo que me ensinou a viver — e não apenas a sobreviver sem beber.
A LÓGICA DO CICLO: QUANDO PARAR É O COMEÇO
No começo da sobriedade, eu achava que meu problema era o álcool. Depois percebi que o álcool era o sintoma. O verdadeiro conflito estava dentro: uma espécie de desalinhamento entre quem eu era e quem eu fingia ser.
O vício é isso: um descompasso entre o que sentimos e o que conseguimos sustentar.
Bebia para suportar a vida que eu mesma construí fora de mim — feita de aparências, de pressa e de ausências.
E foi aí que percebi: eu não precisava apenas parar de beber.
Eu precisava voltar para dentro.
O Ciclo Essencial de Realização começou como um exercício de sobrevivência emocional.
Primeiro, eu precisei me escutar (Reflexão Integral).
Depois, escolher o que realmente queria sustentar (Reconexão Intencional).
Por fim, transformar o que descobri em ação (Realização Efetiva).
Esse ciclo continua até hoje — porque a sobriedade não é uma linha reta, é uma espiral. E cada volta me faz encontrar uma nova parte de mim.
REFLEXÃO INTEGRAL — ESCUTAR-SE DE VERDADE
O primeiro passo foi parar.
Mas não o parar do controle, e sim o parar da escuta.
Parar para me ouvir — sem a pressa de consertar, sem a culpa de ter falhado, sem a necessidade de me defender.
Eu lembro do desconforto dos primeiros dias sem álcool: o corpo em abstinência, a mente em desespero, o silêncio ensurdecedor. Era como se o mundo inteiro tivesse diminuído de volume e, ao mesmo tempo, eu pudesse ouvir tudo o que evitei por anos.
Comecei a anotar o que sentia, a nomear os gatilhos: o tédio, a rejeição, a cobrança, a falta de sentido.
Percebi que o álcool não me dava prazer — me dava alívio.
E que o alívio não era liberdade, era anestesia.
Foi nessa fase que compreendi: a dependência é uma tentativa de fugir de si mesmo.
E a sobriedade, o retorno.
A Reflexão Integral me ensinou a olhar o desconforto sem me punir por ele.
A compreender que o vício não era apenas um erro, mas um pedido de ajuda que meu inconsciente fez através da garrafa.
Quando comecei a me escutar de verdade, o julgamento deu lugar à compaixão. E com isso passei a mergulhar também nas minhas potencialidades.
Como disse Winnicott, “é no ócio e na solidão que o verdadeiro eu emerge”.
E eu precisei da solidão para me encontrar. Essa etapa foi, e continua sendo, a mais silenciosa — e, por isso mesmo, a mais fértil. Porque é nela que a consciência acorda.
RECONEXÃO INTENCIONAL — DESEJAR CONSCIENTEMENTE
Depois de me escutar, precisei decidir: o que eu realmente quero viver?
A sobriedade sem direção vira abstinência sem sentido.
Foi quando percebi que a energia que antes eu gastava tentando parar de beber podia ser usada para criar algo essencial.
Essa foi a virada.
Eu chamei de “projeto essencial” — algo que represente, no mundo, o que desejo ser. Meu primeiro projeto essencial foi escrever o livro Alcoolismo x Minimalismo. Escrevê-lo foi um ato de reconexão.
Enquanto organizava as palavras, comecei a organizar também a mente. Enquanto removia o excesso de coisas, fui removendo o excesso de culpas.
Descobri que o minimalismo era uma metáfora da sobriedade: viver com menos, mas viver de verdade.
A Reconexão Intencional é esse movimento de desejo consciente. Freud dizia que o desejo nos move antes mesmo de sabermos o que queremos.
No alcoolismo, o desejo se distorce: passa a desejar o próprio veneno. Reconectar-se é reeducar o desejo — é voltar a desejar o que nutre, não o que destrói.
Foi nesse ponto que percebi que a sobriedade precisava ser alimentada por algo maior do que a abstinência: um propósito, um projeto, uma criação. Algo que desse sentido ao vazio. Algo que me lembrasse todos os dias o porquê de valer a pena estar lúcida
Reconectar-se é fazer as pazes com o querer. E querer, de novo, é sinal de vida.
REALIZAÇÃO EFETIVA — CRIAR O QUE SE É
A terceira etapa do ciclo é a mais concreta — e, talvez, a mais desafiadora. É quando o insight precisa sair do papel. É quando a palavra vira gesto e o desejo se transforma em prática.
A Realização Efetiva é o ato de colocar no mundo aquilo que antes existia apenas dentro. Depois do livro, vieram projetos, cursos, mentorias, e o portal Mude de Vida.
Não porque eu tivesse tudo resolvido, mas porque entendi que compartilhar o caminho também é parte do caminho.
Viver a sobriedade é praticar autenticidade todos os dias — mesmo quando dói. É agir de acordo com o que se descobriu, não com o que os outros esperam. E, nesse processo, o álcool vai perdendo espaço.
Não porque eu precise me policiar o tempo todo, mas porque ele simplesmente deixa de caber na vida que construí. A sobriedade deixou de ser luta e virou consequência. O prazer deixou de ser fuga e virou presença.
Como escreveu Viktor Frankl, “quem tem um sentido suporta qualquer circunstância”.
Hoje entendo que o meu plano pessoal de sobriedade não é uma lista de proibições, é uma escolha diária de coerência.
É viver de um jeito que faça sentido — mesmo quando a vida não é fácil.
O PLANO QUE FUNCIONA É O QUE NASCE DE DENTRO
Depois de anos estudando autoconhecimento, comportamento e dependência, percebo que muita gente tenta criar um plano de sobriedade como quem monta uma dieta: cheia de regras, metas e castigos.
Mas a sobriedade não é uma planilha, é uma experiência viva. Um plano só funciona quando ele nasce de dentro, não de fora.
Quando ele reflete o que é essencial para você — não o que os outros acham que deveria ser.
Por isso o Ciclo Essencial de Realização não é sobre controlar o vício, mas sobre realizar o que se é.
A reflexão abre consciência.
A reconexão devolve desejo.
A realização transforma tudo isso em vida.
Foi assim que encontrei minha sobriedade: não fugindo do que eu era, mas criando a mulher que eu queria ser.
E sigo criando.
Porque sobriedade não é o fim da embriaguez — é o começo da presença.
Rafa Pessato
Especialista em Autoconhecimento e Comportamento











