O desejo de beber pode parecer um trovão repentino. Um rugido vindo de dentro — não da garganta, mas da alma. Surge no meio do dia, no fim da tarde, no meio do caos ou do silêncio. Vem sem avisar, e quando vem, parece ser mais forte do que tudo.
Mas o que acontece dentro de nós, naquele segundo em que o corpo pede um gole e a consciência pede socorro?
Esse instante — entre o impulso e a escolha — é o coração da sobriedade. É o campo invisível onde a batalha se trava sem plateia. A mente diz “só hoje”, o corpo treme, o peito aperta. E então, uma pausa. Uma respiração. É nesse respiro que o impossível se torna possível.
A SEDE QUE NÃO É DE ÁLCOOL
A maioria dos dependentes não quer, de fato, beber. Quer parar o pensamento. Quer desligar o volume interno. Quer uma trégua da dor, da solidão, da culpa, do tédio. Quer um momento em que a vida pare de doer.
Mas o álcool — esse velho anestésico — não cura. Ele só adia. E, ao adiar, multiplica a dor.
A sede que move o alcoolista não é de bebida: é de sentido.
O copo apenas disfarça o buraco. O problema não é o trago, mas o vazio que o precede.
O INSTANTE DO IMPULSO
Cientistas chamam de craving o desejo intenso e incontrolável pela substância. É o corpo gritando pela dopamina que aprendeu a receber em goles.
Mas o craving não é eterno. Ele dura poucos minutos — às vezes, menos de cinco. O problema é que, nesse curto intervalo, a mente cria histórias convincentes: “só hoje”, “mereço”, “ninguém vai saber”, “não aguento mais”.
E é aí que o treino começa.
Respirar não é uma metáfora espiritual — é neurociência aplicada à sobrevivência.
Respirar profundamente aciona o nervo vago, responsável por acalmar o sistema nervoso, reduzir a frequência cardíaca e libertar o corpo do modo de ameaça.
Respirar é lembrar o corpo que ele não está em perigo — que o perigo é só o velho desejo travestido de necessidade.
MEDITAÇÕES CURTAS PARA O MOMENTO DA FISSURA
Não se trata de virar um monge.
Trata-se de sobreviver.
Abaixo, algumas práticas curtas — de segundos ou minutos — que ajudam a atravessar o momento mais perigoso: aquele em que o corpo pede álcool e a alma pede paz.
1. Respiração 4-7-8
Inspire pelo nariz em 4 tempos.
Segure o ar por 7.
Expire lentamente pela boca em 8.
Repita três vezes.
Essa técnica, criada pelo Dr. Andrew Weil, induz relaxamento e desacelera o sistema nervoso.
2. Nomear o que sente
Feche os olhos e diga mentalmente:
“Estou sentindo vontade de beber.”
“Estou com medo.”
“Estou cansado.”
Nomear o sentimento tira o poder do impulso, como se a mente perdesse parte do feitiço ao ser revelada.
3. O corpo como âncora
Sinta o contato dos pés com o chão.
Perceba o ar entrando pelas narinas.
Observe o batimento no peito.
Você está vivo. E a vida — mesmo doendo — ainda pulsa.
4. A pausa da verdade
Pergunte-se:
“O que realmente quero agora?”
Às vezes, a resposta não é “beber”, é “ser abraçado”.
Outras vezes, é “fugir da culpa”.
Mas só quem respira o bastante para ouvir a si mesmo consegue perceber a diferença.
DO IMPULSO AO ENCONTRO
A sobriedade não é ausência de desejo. É presença.
O alcoolista aprende a viver num corpo que pede o que o destrói — e a curar esse paradoxo com delicadeza.
A cada fissura vencida, algo renasce: a confiança. É como se o corpo, aos poucos, aprendesse que pode sobreviver sem o líquido que o dominava.
No início, parece impossível. Mas há um momento em que o impulso perde o trono, e a respiração vira abrigo. É o dia em que o ex-bebedor percebe que o copo não o controlava — o que o controlava era o medo de sentir.
MEDITAÇÃO DO MINUTO: O RESPIRO QUE SALVA
Pare. Feche os olhos.
Inspire devagar, como quem saboreia o ar.
Sinta a vida entrar.
Segure o ar e imagine uma luz — não mística, mas física — expandindo-se dentro do peito.
Expire o que dói: a lembrança, o arrependimento, a vontade.
Fique ali, por um instante.
Entre um gole que não veio e uma escolha que ficou.
Respirar, para o dependente, é reeducar o corpo a viver sem fuga.
É aprender que o prazer não precisa ser imediato — ele pode ser silencioso, lento, maduro.
O prazer da presença.
O MILAGRE DA PAUSA
A dependência é o contrário da pausa. É o automatismo. O corpo agindo antes que a consciência acorde. Mas a respiração devolve o intervalo — o espaço onde a liberdade mora.
E quando há espaço, há escolha. A sobriedade começa quando o indivíduo, em vez de repetir o velho gesto, decide respirar antes de beber.
Esse respiro é o verdadeiro “primeiro gole” — não da bebida, mas da vida.
Há quem diga que o álcool é uma forma de fuga; outros, que é uma tentativa desesperada de presença. Talvez seja ambos.
Mas o respiro — simples, gratuito, invisível — é o antídoto universal. Respirar é lembrar que estamos vivos. E estar vivo é a primeira condição para qualquer transformação.
Da próxima vez que o desejo vier, não lute com ele.
Respire com ele.
Acolha-o.
E, no silêncio entre uma inspiração e outra, perceba: a vida não está no copo — está em quem o segura.
Rafa Pessato
Especialista em Autoconhecimento e Comportamento











