Há uma voz que te chama.
Nem sempre é um copo, uma mesa de bar, ou o tilintar de uma garrafa. Às vezes é o eco de uma lembrança, o vazio de um domingo, o peso do silêncio depois de uma briga. Às vezes é o corpo pedindo anestesia.
E quando essa voz sussurra — “só hoje, só um gole, só um alívio” — algo dentro de ti já começa a ceder.
A bebida, para o alcoolista, não é só uma substância. É um chamado. Um feitiço emocional que promete leveza, pertencimento, coragem — e entrega prisão, arrependimento e culpa. O vício não é apenas químico; é psicológico, afetivo, existencial. Ele se enraíza nas tuas emoções mais antigas, nas feridas que você tentou esquecer e nas faltas que nunca foram nomeadas.
O GATILHO NÃO É O BAR — É O QUE O BAR DESPERTA
Muitos acreditam que o gatilho está na bebida, mas o verdadeiro disparo acontece dentro.
É o cheiro de chuva que lembra um amor perdido. O tom de voz do pai que gritava. O sucesso do outro que acende tua sensação de fracasso. O silêncio do lar que te pesa mais do que o ruído do mundo.
A recaída começa muito antes do primeiro gole. Ela nasce no pensamento “eu mereço relaxar”, “ninguém vai notar”, “dessa vez será diferente”.
E é aí que o álcool se transforma em linguagem emocional: ele fala quando você não consegue.
O gatilho emocional é o ponto de encontro entre a dor e o desejo de não a sentir. E o alcoolismo é o pacto repetido de calar o que dói — até que o corpo, um dia, grite mais alto que o vício.
O VÍCIO FALA A LÍNGUA DA TUA CARÊNCIA
Todo dependente, antes de se tornar um, foi um carente de algo: amor, validação, calma, colo, sentido.
A bebida entra como tradutora das emoções que a psique não dá conta. Bebe-se para preencher o vazio, para dormir o medo, para suportar o que é insuportável.
Mas também se bebe para existir. Para caber. Para se encaixar em um mundo que cobra performance, alegria e produtividade — e que pouco acolhe quem sente demais.
O alcoolista é, no fundo, um sensível desarmado. Bebe para suportar o excesso da vida.
E quando a sobriedade chega, o mundo volta com todos os ruídos, dores e lembranças que estavam adormecidos. É nesse ponto que muitos recaem — não por fraqueza, mas porque o silêncio é ensurdecedor.
AS ARMADILHAS DO COTIDIANO
Os gatilhos não estão só nos bares, estão nas esquinas da rotina:
- O jantar em família onde todos brindam e você não.
- A sexta-feira que insiste em te lembrar quem você era.
- A solidão depois do expediente.
- O scroll infinito nas redes sociais, onde todos parecem felizes.
Há também os gatilhos invisíveis: a autocrítica, o perfeccionismo, o tédio, a saudade, o medo de não ser suficiente.
São esses que mais pegam — porque não se veem, apenas se sentem.
Reconhecer um gatilho é como acender a luz num quarto escuro. A bebida perde poder quando é nomeada.
Mas para nomear, é preciso coragem de olhar.
A CURA COMEÇA QUANDO VOCÊ OUVE O CHAMADO — E NÃO OBEDECE
Não se trata de evitar o bar, mas de entender o que ele simboliza.
O bar pode ser a tua fuga, mas também o teu espelho.
Cada desejo de beber é uma mensagem do corpo pedindo algo: descanso, afeto, liberdade, perdão.
E cada vez que você diz “não” à bebida, está dizendo “sim” a algo que finalmente pode nascer dentro.
A sobriedade não é o contrário do prazer — é o prazer que deixou de ser anestesiado. É a alegria que vem sem ressaca. É o riso que não precisa de motivo. É a coragem de permanecer inteiro.
O CHAMADO AINDA VIRÁ — MAS AGORA VOCÊ SABE QUEM ATENDE
A bebida continuará te chamando, em dias bons e ruins. Mas o que muda é quem atende.
Antes era o vazio, hoje é a consciência. Antes era o medo, hoje é o discernimento. Antes era o vício, hoje é você.
E talvez esse seja o verdadeiro milagre da sobriedade: transformar a voz que te destruía na voz que te liberta.
Rafa Pessato
Especialista em Autoconhecimento e Comportamento











