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BEBER SEM FICAR BÊBADO: o futuro chegou (mas e a alma, fica sóbria?)

Se você segurasse nos dedos um cálice translúcido — sem etanol, sem cheiro forte, sem ressaca — mas que te fizesse sorrir com suavidade, sentir o corpo leve, o espírito mais aberto… Será que ainda tomaria? Ou será que o copo, com todo o seu ritual, era parte essencial da estética da sedução?

Essa hipótese deixou de ser apenas literatura: no Reino Unido, o neurocientista David Nutt, conhecido por suas pesquisas sobre drogas e comportamento, vem desenvolvendo bebidas “funcionais” sem álcool que pretendem ativar o neurotransmissor GABA (ácido gama-aminobutírico) — responsável por modular ansiedade, relaxamento e inibição neuronal — sem os efeitos tóxicos do álcool.

De acordo com Nutt, a ideia nasceu de décadas estudando o impacto do álcool sobre o cérebro humano. Ele percebeu que o efeito mais buscado na bebida — aquela sensação de “soltar”, de “ficar mais leve entre pessoas” — vem justamente do estímulo dos receptores GABA. Sua empresa, GABA Labs, e a marca de destilado botânico Sentia Spirits, buscam preservar o encontro, reinventar o prazer e proteger o corpo.

Mas o projeto, ao mesmo tempo que fascina, também inquieta: o que realmente buscamos em cada gole? O álcool é acaso um atalho químico — ou um espelho? Se pudéssemos sentir “só o bem” do beber, sem o mal, o ritual perderia seu sentido?

 

A CIÊNCIA ENTRE GOLES: O QUE O ÁLCOOL FAZ (E DESFAZ) NO CÉREBRO

O álcool — mais precisamente o etanol — interage com vários sistemas de neurotransmissores, entre eles o dopaminérgico, serotoninérgico, glutamatérgico e GABAérgico, como explica o centro norte-americano; Instituto Nacional sobre Abuso de Álcool e Alcoolismo (NIAAA)

Quando bebemos, há um aumento na ação do GABA, o neurotransmissor “freio” do sistema nervoso central. Essa modulação reduz a excitação neuronal, o que gera relaxamento, alívio da ansiedade e maior sociabilidade. Paralelamente, há liberação de dopamina no núcleo accumbens, região responsável pela sensação de recompensa e prazer.

Segundo estudo publicado no Molecular Brain Journal, o consumo repetido causa adaptação dos receptores GABA_A, levando à tolerância e dependência.

Quando o álcool é retirado, o corpo, acostumado ao equilíbrio químico alterado, reage com ansiedade, tremores e irritabilidade. Esse fenômeno, conhecido como kindling, torna cada abstinência mais intensa que a anterior — um efeito documentado em diversas pesquisas sobre dependência sedativo-hipnótica.

Em outras palavras: o álcool é um simulador químico de relaxamento — um atalho emocional que, enquanto oferece prazer, reorganiza o cérebro, deixando marcas profundas.

 

O “ÁLCOOL LIMPO”: PROMESSA, RISCO E POESIA DA SUBSTITUIÇÃO

 

O que são essas bebidas “não alcoólicas funcionais”?

As novas bebidas desenvolvidas por David Nutt e sua equipe — como o Sentia Spirits, disponível em sentiaspirits.com — são apresentadas como “espíritos botânicos” sem álcool, projetados para ativar naturalmente o GABA e gerar relaxamento social sem os efeitos tóxicos do etanol.

Segundo o próprio site da marca, a fórmula combina extratos de plantas e compostos bioativos que modulam o sistema GABA, “oferecendo os benefícios sociais do álcool sem ressaca, dano hepático ou dependência”.

A revista WIRED descreveu o Sentia como “uma nova classe de bebidas funcionais que imitam o efeito positivo do álcool — a leve euforia e a desinibição — sem os riscos físicos e psicológicos associados”.

Os efeitos relatados, contudo, são sutis — mais próximos de uma serenidade consciente do que da embriaguez clássica.

Nutt resume sua ambição em uma frase provocadora:

“Queremos reprogramar o prazer humano, libertar a humanidade da toxicidade da embriaguez.” GABA Labs

 

Quais os limites, riscos e dilemas?

  1. Efeito parcial e subjetivo.

As bebidas funcionais não reproduzem a mesma profundidade emocional que o álcool oferece. É um “prazer limpo”, mas menos intenso — o que levanta uma questão sobre o que realmente buscamos: o efeito químico ou a experiência simbólica?

  1. A base do problema permanece.

O álcool muitas vezes é um sintoma, não a causa. Desta forma, ele funciona como anestésico para dores emocionais, ansiedade e solidão.

Se esses vazios não forem olhados, uma bebida “sem álcool” pode apenas sofisticar a fuga.

  1. Risco de nova dependência psicológica.

Mesmo sem o etanol, o consumo repetido em busca de um estado emocional específico pode criar dependência comportamental — o vício no ritual, na expectativa de relaxar.

  1. Efeitos desconhecidos a longo prazo.

Apesar de naturais, os ingredientes de modulação do GABA ainda carecem de estudos clínicos extensos. Os próprios criadores reconhecem que o uso contínuo precisa de monitoramento.

  1. A ambivalência do ritual.

Beber sempre foi também um ato simbólico: o brinde, o som do copo, a estética do excesso. Retirar o risco pode retirar também parte da poesia. O álcool, afinal, é um espelho cultural — onde projetamos tanto o prazer quanto o limite.

 

DEPENDÊNCIA, LIBERDADE E SENTIDO: O QUE REALMENTE ESTÁ EM JOGO

 

Narciso e o espelho do copo

No mito, Narciso se apaixona pela própria imagem refletida na água — uma beleza que o atrai e o destrói. O álcool, em certo sentido, é esse reflexo químico: nos devolve uma versão ampliada de nós mesmos, mas por instantes apenas.

Nietzsche escreveu:

“Quem luta com monstros deve cuidar para não se tornar monstro.”

Na dependência, o monstro é o próprio alívio que prometia salvação.

Para Kierkegaard, a existência oscila entre estágios — o estético, o ético e o religioso — e cada um reflete o modo como o ser humano enfrenta o desespero de ser livre. Beber pode ser uma forma estética de suportar o peso de existir; parar de beber, uma forma ética de se reconciliar com ele.

Viktor Frankl, por sua vez, dizia que “a busca pelo sentido é a motivação primária da vida humana”. Sob esse olhar, a sobriedade é menos uma renúncia e mais uma retomada de sentido — uma tentativa de preencher o vazio sem anestesia.

 

O caminho da presença sobre a fuga

Para quem vive o alcoolismo, a sobriedade não é abstinência pura — é reeducação da presença. É acordar para a dor sem fugir dela, reaprender o prazer com lucidez.

Segundo o National Institute on Drug Abuse (NIDA), a recuperação implica “remodelar os circuitos de prazer e autocontrole”, permitindo que o cérebro volte a liberar dopamina por meios naturais — arte, música, conexão, movimento, espiritualidade.

Os gatilhos emocionais — raiva, solidão, ansiedade — não desaparecem, mas podem se transformar em portais de consciência. O deslize não é fracasso moral, mas parte do processo humano de regulação e aprendizado.

 

E SE A BEBIDA PUDESSE FINALMENTE SERVIR — EM VEZ DE APRISIONAR?

Voltemos à hipótese inicial: uma bebida que ativasse os aspectos sociais e relaxantes do álcool, sem seus danos. Beberíamos menos? Beberíamos diferente?

Se o ritual permanecer — o gesto de brindar, a partilha, o encontro — talvez o álcool perca o papel de vilão ou de deus. Pode se tornar um meio, não um fim.

Bebidas como a Sentia, da GABA Labs, talvez representem um estágio de transição: um caminho de moderação consciente, uma alternativa para quem deseja manter o gesto do brinde, mas reduzir os danos.

Elas não substituem o trabalho interno que a sobriedade exige — mas podem funcionar como objeto transicional, na linguagem simbólica de Winnicott: algo que ajuda a atravessar o abismo entre o que éramos e o que estamos aprendendo a ser.

A decisão, no entanto, continua pessoal.

Beber ou não beber é escolha — e liberdade só existe quando há consciência.

 

ENTRE A TAÇA E A ESSÊNCIA

Num mundo que inventa álcool artificialmente limpo, a velha contradição permanece: o que faremos com o poder de beber sem sofrer? Continuaremos buscando o prazer, agora sem culpa — ou finalmente aprenderemos a bebê-lo com presença?

A dependência não se dissolve com tecnologia; ela se transforma quando reaprendemos a viver com autenticidade.

A sobriedade, então, é talvez a ciência mais humana de todas: a arte de sentir, sem fugir.

No fim, talvez a maior invenção não seja uma bebida sem álcool, mas uma existência sem anestesia.

Uma taça de presença. Um brinde à vida que não precisa ser diluída para ser sentida.

E a pergunta segue ecoando:

Se existisse uma bebida sem álcool, mas com efeito: será que a gente ainda beberia?

 


Rafa Pessato

Especialista em Autoconhecimento e Comportamento

rafapessato.eu