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VERGONHA, DOR E VÍCIO: A Anatomia Silenciosa da Fuga

“A pergunta certa não é ‘por que o vício?’, mas ‘por que a dor?” Gabor Maté

“A vergonha é o medo de não sermos dignos de amor e pertencimento.” Brené Brown

 

O QUE A GENTE NÃO DIZ

Não é o álcool.

Não é a droga.

Não é o cigarro, o açúcar, o celular ou o sexo casual.

Essas coisas são só as pontas visíveis de um iceberg emocional que a gente se acostumou a empurrar pra baixo.

No fundo — bem no fundo — mora uma dor muda, uma vergonha ancestral, uma sensação de “tem algo de errado comigo” que se instala antes mesmo que a gente saiba nomear sentimentos.

E é sobre isso que este texto fala: sobre a anatomia da fuga.

Sobre o que nos leva a correr de nós mesmos, e como parar de correr exige mais do que força de vontade. Exige coragem para olhar de frente o que sempre tentamos enterrar.

 

A FERIDA INVISÍVEL: COMO A VERGONHA NASCE

Imagine uma criança pequena. Ela ainda não sabe o que é “ser boa” ou “ser ruim”. Ela simplesmente é. Quando sente fome, chora. Quando se diverte, grita. Quando está cansada, deita no chão. Ela é pura autenticidade — até que algo começa a mudar.

Talvez ela chore demais, e alguém diga: “para de fazer drama”.

Talvez ela ria alto, e escute: “isso é feio, menina”.

Talvez ela diga o que sente, e ouça: “engole esse choro”.

E então, pela primeira vez, ela aprende que mostrar quem ela é pode resultar em rejeição.

Assim nasce a vergonha — não como culpa por algo que fez, mas como a sensação de que ela é o problema.

Segundo Brené Brown, vergonha é a emoção que nos diz:

“Você não é suficiente. E se as pessoas descobrirem quem você realmente é, vão se afastar.”

É uma dor silenciosa que não grita, mas sussurra nas entrelinhas da vida adulta:

  • “Você precisa se esforçar mais.”
  • “Você não pode errar.”
  • “Você é demais. Você é de menos. Você está fora.”

E assim, a autenticidade vai sendo trocada por performance.

A verdade, por adaptação.

A conexão, por proteção.

 

O VÍCIO COMO ADAPTAÇÃO, NÃO COMO FALHA

Gabor Maté, médico e especialista em dependência, nos provoca com uma ideia poderosa: o vício não é o inimigo — é um sintoma. É uma tentativa (muito compreensível) de aliviar uma dor insuportável. O vício é uma solução que encontrou o corpo para uma dor que a alma não soube nomear.

“Toda dependência começa com dor e termina com dor.”

Quando alguém bebe demais, fuma, transa compulsivamente ou se entope de comida ou redes sociais, a pergunta não deveria ser “o que há de errado com essa pessoa?”, mas sim:

“O que aconteceu com ela para que precise se anestesiar o tempo todo?”

E na raiz disso quase sempre está a vergonha — essa sensação de ser insuficiente, inadequado, quebrado. Não é à toa que tantas pessoas em recuperação falam sobre um sentimento crônico de vazio e desconexão. Como confiar em si mesmo quando se passou a vida acreditando que há algo fundamentalmente errado dentro?

O vício, então, não é apenas um problema comportamental — é um ritual inconsciente de alívio. Um jeito de silenciar a vergonha, ainda que por alguns minutos.

 

A ANESTESIA COTIDIANA

Você talvez esteja pensando: “mas eu não sou viciado”.

Será?

Talvez você não beba todos os dias, nem use crack. Mas quantas vezes por dia você pega o celular sem nem perceber?

Quantas vezes já comeu sem fome, ou ficou rolando a timeline mesmo exausto, ou comprou algo só pra se sentir um pouco mais… inteiro?

Vivemos em uma cultura que nos ensina a fugir da dor a todo custo — e para isso oferece um cardápio vasto de anestésicos emocionais.

Segundo Brené Brown, o problema não está apenas na dor em si, mas na tentativa desesperada de evitá-la.

“Não podemos anestesiar seletivamente as emoções. Quando entorpecemos a dor, também entorpecemos a alegria, o amor, a gratidão.”

Ou seja: quanto mais fugimos da vergonha, da tristeza ou do medo, mais nos desconectamos da vida real — aquela onde a alegria também mora.

 

VERGONHA, SEGREDO E SILÊNCIO

A vergonha cresce no escuro.

Ela se fortalece no silêncio.

É por isso que a maioria das pessoas não fala sobre suas dores mais íntimas.

É por isso que, em muitos grupos de recuperação, o primeiro passo é simplesmente dizer em voz alta: “eu tenho um problema”.

Não porque isso resolva tudo, mas porque, como diz Brené Brown, colocar a vergonha na luz é o primeiro passo para quebrar seu poder.

Na prática, isso significa criar espaços onde as pessoas possam ser vistas sem o filtro da perfeição. Onde possam dizer:

  • “Eu me sinto quebrada.”
  • “Eu não sei como parar.”
  • “Eu não acho que mereço amor.”

E, em vez de serem julgadas, serem acolhidas.

 

O CICLO: DA DOR E DA VERGONHA AO VÍCIO

Vamos desenhar esse ciclo com clareza:

  1. Dor emocional não reconhecida (abandono, rejeição, trauma, solidão)
  2. Gera vergonha internalizada (“eu sou o problema”)
  3. Essa vergonha precisa ser calada → comportamento compulsivo ou vício
  4. Depois do alívio, volta a dor e mais vergonha → ciclo se repete

Esse ciclo é automático, silencioso e muito comum. Rompê-lo não é uma questão de força de vontade, mas de consciência, acolhimento e reconexão com a própria história.

 

CURAR NÃO É CONSERTAR: É INTEGRAR

A proposta de Brené Brown e Gabor Maté converge num ponto crucial: a cura começa quando paramos de fugir e começamos a nos olhar com compaixão.

Não se trata de “consertar” quem somos, mas de reconhecer a nossa dor sem deixar que ela nos defina.

Algumas chaves para esse processo:

  • Nomear a vergonha: falar sobre ela tira seu poder.
  • Revisitar a dor com segurança: com apoio, terapia, grupos.
  • Construir conexão genuína: com pessoas, com o corpo, com o presente.
  • Cultivar a vulnerabilidade como força: mostrar-se como é, e não como “deveria ser”.

 

VOLTAR PARA CASA

Você não é sua dor.

Você não é seu vício.

Você não é a vergonha que aprendeu a carregar.

Se há algo de errado, não é com você — é com a ideia de que sentir é fraqueza, de que mostrar-se é perigoso, de que errar é imperdoável.

Vergonha e dor são partes da vida. Mas quando a gente para de fugir delas, elas deixam de controlar nossas escolhas. No fim das contas, voltar para si mesmo é o maior ato de coragem. Porque só quando encaramos o que nos assusta é que podemos, de fato, nos libertar.

E a liberdade não está em não sentir mais dor — mas em não precisar mais fugir dela.