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SOBRIEDADE É MOVIMENTO: a física e o físico da vida que recomeça

Há um instante — quase sempre discreto, quase sempre só seu — em que o corpo percebe antes da mente que algo precisa mudar. Um cansaço incomum, um fôlego curto, um descompasso entre o que você pensa que é e o que seu corpo mostra no espelho. Para quem está na dependência, esse instante pode parecer banal, mas é justamente aí que mora o início de uma força que a ciência já conhece, mas que o sujeito sóbrio aprende na pele: nada muda até que algo se mova.

A Primeira Lei de Newton, a velha e teimosa Lei da Inércia, já avisava: um objeto permanece exatamente onde está — parado ou repetindo o mesmo trajeto — até que uma força externa o empurre para uma nova direção. Na adicção, essa “linha reta” pode ser uma rota de autodestruição. Na sobriedade, ela pode se tornar o começo de outro destino.

Este texto é sobre isso: sobre como mover o corpo altera a psique, altera gatilhos emocionais, altera o desejo, altera a própria ideia de si. Sobre como a física explica o que você vive. E sobre como o corpo, quando desperta, carrega junto a vida inteira.

 

A INÉRCIA DO ALCOOLISMO: QUANDO O CORPO APRENDE A PARAR

No alcoolismo, a inércia não é só metáfora: é fisiologia. Quando você bebe compulsivamente, o cérebro se acostuma a repetir padrões de recompensa e alívio. A neurociência mostra que o consumo crônico reduz a sensibilidade da dopamina, responsável pela motivação e movimento. É como se o corpo fosse perdendo o impulso vital — aquele que um dia foi natural, espontâneo, até alegre.

Segundo o Instituto Nacional de Abuso de Álcool e Alcoolismo dos EUA (NIAAA), o álcool afeta diretamente o córtex pré-frontal, responsável por planejamento, escolhas, capacidade de reagir a longo prazo. Justamente a área que ajuda você a sair do automático. Sem ela funcionando bem, a vida vira linha reta — aquela mesma que Newton descreve na lei da inércia.

E quanto mais tempo parado, mais difícil mover-se. Não só emocionalmente: fisicamente também.

Estudos publicados na JAMA Psychiatry – Revista da Associação Médica Americana (Psiquiatria) mostram que dependentes apresentam redução de massa cinzenta em regiões ligadas ao impulso e ao autocontrole. É como se o cérebro perdesse “músculo” para decidir viver de outro jeito.

Aqui nasce a pergunta inevitável: se o álcool empurra você para o torpor, quem ou o que empurra você de volta para a vida?

 

A FORÇA EXTERNA: O PRIMEIRO MOVIMENTO NA SOBRIEDADE

A força que quebra a inércia é muitas vezes pequena. Um susto físico. Uma vergonha íntima. Um olhar de alguém que você ama. Um exame clínico. Uma verdade que, por fim, você não conseguiu mais anestesiar. Em alguns casos, é uma dor; em outros, um vislumbre inesperado de futuro.

O que importa é que essa força não é milagrosa — ela é movimento.

A física explica: qualquer objeto precisa de energia para alterar seu estado. A ciência humana confirma: qualquer pessoa precisa de sentido para alterar sua rota. E não existe sentido sem corpo. Não existe transformação apenas mental.

A sobriedade começa como um passo, não como uma tese.

Um passo real: levantar do sofá; beber água; caminhar cinco minutos.

Um passo simbólico: admitir que não consegue controlar o consumo.

E um passo existencial: aceitar que viver dói — mas que também encanta.

Esse primeiro movimento, por menor que seja, é o que Newton chamaria de força externa. E o que muitos chamam, com os olhos marejados, de renascimento.

 

CORPO QUE SE MOVE, MENTE QUE ABRE: A BIOLOGIA DA TRANSFORMAÇÃO

A literatura científica tem sido generosa em mostrar que o corpo é o primeiro agente de mudança na adicção. Um estudo publicado na Revista Álcool e Alcoolismo (Oxford University Press) mostra que exercícios aeróbicos regulares reduzem:

  • craving (desejo intenso)
  • ansiedade
  • sintomas depressivos
  • risco de recaída

A explicação está no impacto direto do movimento sobre neurotransmissores: endorfina, serotonina e dopamina — as mesmas vias afetadas pelo álcool. Só que, ao contrário da bebida, o exercício reorganiza o sistema de recompensa de forma saudável, consistente e criativa.

É como se o corpo dissesse:

 “Eu lembro como era sentir prazer sem me destruir.”

A ciência confirma o que a experiência existencial revela: quando o corpo desperta, a alma faz silêncio para ouvir.

 

O LUGAR DO SOFRIMENTO: QUANDO A VIDA PEDE MOVIMENTO

Quem viveu a adicção de substâncias conhece aquele buraco fundo em que os dias parecem repetição e a dor parece sempre mais rápida do que a própria capacidade de mudar. Há um momento em que o sofrimento deixa de ser aviso e vira moradia.

Mas existe uma ética do movimento que brota desse lugar. Algo como: quando nada externo te salva, você precisa virar a própria força externa.

Não há frase mais física — nem mais humana — do que essa.

Em pessoas com histórico de alcoolismo, o processo de retomar o corpo é também o processo de retomar o eixo. Pesquisas da Escola de Medicina de Harvard mostram que atividades físicas moderadas reduzem em até 50% os sintomas de abstinência leve e melhoram significativamente a regulação emocional em até 12 semanas de prática contínua.

Mover o corpo ajuda a mover aquilo que estava represado: medo, verdade, raiva, coragem, memória.

O corpo não esquece, mas o corpo reaprende.

 

A DANÇA ENTRE FÍSICA E EXISTÊNCIA: MOVIMENTO COMO SENTIDO

O movimento não é apenas biologia; é também escolha, renúncia, estilo de vida. O filósofo que escreveu que “viver é arriscar-se” certamente entenderia alguém que decide romper com a dependência. Porque romper é sempre arriscar; é sempre mover-se no escuro.

Aqui, a física encontra poesia:

Movimento é deslocamento.

Deslocamento é mudança.

Mudança é vida.

E vida é tudo aquilo que você achava que o álcool te dava — mas sem o preço de perder a si mesmo.

Enquanto isso, o corpo aprende de novo a sentir. Os pés tocam o chão com mais firmeza. Os músculos acordam como se fossem parte de uma lembrança que você tinha esquecido. Os pulmões se enchem como se também estivessem recomeçando uma história.

A sobriedade é física antes de ser filosófica.

É visceral antes de ser racional.

É movimento antes de ser narrativa.

 

MICROMOVIMENTOS: O QUE REALMENTE MUDA A VIDA DE QUEM DESEJA SOBRIEDADE

Dentro da adicção, tudo parece grande demais para ser feito. Por isso a transformação começa pequena. A física chama de “força mínima para alterar o estado de repouso”. A vida chama de coragem.

Pesquisadores da Revista Britânica de Medicina do Esporte afirmam que bastam 10 minutos de movimento diário para alterar significativamente a química cerebral, reduzindo ansiedade, craving e irritabilidade — sintomas comuns de quem está no início da sobriedade.

Dez minutos.

O tempo de ferver água.

O tempo de duas músicas.

O tempo de lembrar que você existe.

A dependência rouba o tempo; o movimento devolve.

O álcool rouba o eixo; o corpo em movimento reposiciona.

A compulsão rouba o ritmo; a caminhada devolve a cadência.

 

A RESSURREIÇÃO DO CORPO: POR QUE MOVER-SE ABRE PORTAS INTERNAS

Quando uma pessoa adicta começa a se movimentar, algo profundo acontece: a identidade começa a assumir nova forma. Não é mais “eu, o que bebe”. É “eu, o que faz algo por si”.

Isso gera um fenômeno estudado na ciência do comportamento: autoeficácia — a sensação de que você consegue realizar algo. Esse sentimento reduz recaídas, segundo estudos da Administração de Serviços de Saúde Mental e Abuso de Substâncias dos EUA (SAMHSA), não por mágica, mas por física emocional.

Se o corpo consegue um passo, consegue dois.

Se consegue dois, começa a acreditar em três.

E a mente acompanha esse movimento.

O corpo é professor.

A mente é aluna.

A vida é o campo de experimentação.

 

O DIA EM QUE A SOBRIEDADE GANHA ROSTO

Há um ponto na jornada — cada pessoa sabe o seu — em que a sobriedade ganha textura. Já não é só uma ideia: é uma sensação. É de manhã, ao acordar com clareza. É no meio da tarde, quando você percebe que a ansiedade diminuiu. É numa caminhada breve, em que o vento toca o rosto e o corpo diz: “Eu estou aqui.”

E isso muda tudo.

O movimento cria pertencimento.

Pertencimento cria sentido.

Sentido cria continuidade.

E continuidade sustenta a sobriedade.

A física chama de quantidade de movimento. A vida chama de consistência.

 

A NOVA LEI PESSOAL DO MOVIMENTO: SOBRIEDADE É O CORPO EM DIA

A primeira lei de Newton diz que algo só muda quando uma força externa age. A sobriedade revela que a força externa pode ser você — movendo seu corpo, movendo seu dia, movendo sua história.

Mover-se é a filosofia possível para quem quer recomeçar.

É o método prático.

É o antídoto contra a paralisia emocional.

É o jeito humano, real e imperfeito de dizer ao mundo: “Eu escolhi viver.”

A física explica.

A experiência comprova.

O corpo confirma.

E a sobriedade — essa que é movimento — agradece.

 


Rafa Pessato

Embriague-se de si

rafapessato.eu