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SOBRIEDADE: a arte de voltar para o lar — e ficar

“Não há lugar como o nosso lar.” Dorothy, em O Mágico de Oz

Você é seu próprio lar.

Essa frase parece simples, quase um clichê de Instagram. Mas experimente dizer isso olhando nos seus próprios olhos, depois de atravessar anos — ou décadas — vivendo num exílio emocional. Depois de tantas manhãs acordando de ressaca e noites adormecendo embriagado, tentando esquecer que algo em você doía demais.

Você é seu próprio lar. E a sobriedade é, antes de qualquer coisa, o movimento de retornar a esse lar — mesmo que as paredes estejam ruindo, mesmo que o chão esteja coberto de cinzas, mesmo que você nem se reconheça mais no espelho pendurado na sala.

Essa volta para casa não é uma linha reta. É mais um labirinto que se desenha passo a passo, com erros, recaídas, silêncios e renascimentos. É como andar vendado dentro de si mesmo, tateando pelas memórias, pelas culpas, pelos medos, até reconhecer o cheiro da sua própria alma.

 

O EXÍLIO DE SI

O vício — seja do álcool, de substâncias, de padrões destrutivos, ou mesmo de distrações intermináveis — é um tipo de fuga. Uma tentativa de evitar o encontro com o que pulsa dentro. Muitas vezes, a dor de estar em si é tão insuportável que é preciso sair correndo.

“O homem é o único animal que bebe sem estar com sede.” Plínio, o Velho

Quem já passou pela dependência sabe: a bebida não é apenas um líquido, é um refúgio. Ela dá o que a vida parece negar — coragem artificial, pertencimento temporário, anestesia emocional. Beber é construir uma casa de vidro no meio do deserto: bonita de longe, frágil por dentro.

Mas o preço é alto. A cada dose, mais longe de si. A cada porre, mais fragmentado. A cada ressaca, mais exilado. Chega um ponto em que voltar parece impossível. Você olha ao redor e não vê estrada. Só ruínas.

Mas há uma verdade que nenhuma ressaca pode apagar: você ainda está aí. Escondido, talvez. Ferido, com certeza. Mas vivo. E isso basta para começar.

 

VOLTAR PARA CASA

Decidir parar de beber — ou de qualquer outro vício — não é uma decisão apenas de saúde. É uma decisão existencial. É dizer: eu quero viver como quem está presente. É declarar: cansei de fugir de mim.

“A liberdade é o que você faz com o que fizeram com você.” Jean-Paul Sartre

No começo, a volta para si é dolorosa. Porque você não conhece esse lar. Não reconhece as paredes. Tem medo do que vai encontrar. A bebida era o suporte, o andaime que sustentava sua imagem no mundo. Sem ela, você se sente vulnerável, pequeno, falho.

Mas o autoconhecimento entra aqui como bússola. Ele não te leva para frente. Ele te leva para dentro. E só dentro é que se encontra o caminho de volta.

Autoconhecer-se é como vasculhar uma casa abandonada. É abrir gavetas esquecidas, encontrar fotografias amareladas, ouvir os ecos do que foi dito — e do que nunca pôde ser dito. É olhar para suas feridas com o cuidado de quem não quer mais fugir delas.

 

O SILÊNCIO COMO MESTRE

Ficar sóbrio é, entre outras coisas, aprender a conviver com o silêncio. Porque o barulho externo sempre foi uma distração. O barulho interno, um tormento. A bebida abafava os dois. Na ausência dela, tudo ecoa.

E é no eco que mora o ensinamento.

“O silêncio é o único amigo que nunca trai.” Confúcio

A sobriedade é aprender a ouvir o que o corpo grita, o que a alma sussurra, o que o coração esconde. É aguentar o desconforto da lucidez. É permanecer. É respirar fundo e resistir à tentação de calar o que precisa ser dito, sentido, atravessado.

O silêncio revela não apenas dores, mas também verdades esquecidas: seus talentos, seus desejos reais, sua sensibilidade. Aquilo que o álcool apagava começa a brilhar, ainda que tímido. Ficar é se permitir ver essa luz — e não fugir dela.

 

A RECONSTRUÇÃO DO LAR

“Você não pode voltar no tempo e mudar o começo, mas pode começar onde está e mudar o final.” C.S. Lewis

Voltar para casa não é apenas reencontrar a si mesmo. É reconstruir esse lar. Porque o que existia antes talvez tenha sido construído em cima de traumas, pressões sociais, crenças limitantes. Talvez você nunca tenha sido ensinado a se amar. Talvez nunca tenha tido permissão para ser quem é.

Mas agora, sóbrio, consciente, você tem a chance de escolher. Tijolo por tijolo. Hábito por hábito. Relação por relação. Você pode decorar sua casa interna com compaixão, com paciência, com autocuidado. Pode jogar fora os móveis herdados da culpa, do medo, da vergonha.

Pode pintar as paredes com cores suas.

Essa reconstrução é solitária, mas não precisa ser isolada. Existem grupos, terapias, amigos verdadeiros, livros, práticas espirituais. Há uma rede invisível de pessoas que, como você, decidiram voltar para casa. Elas entendem o caminho.

 

A MORADA DA PRESENÇA

Sobriedade não é ausência de algo. É presença de tudo. É estar inteiro, ainda que imperfeito. É não fugir da dor, mas também não fugir do prazer — o prazer de viver com integridade, de acordar com clareza, de estar conectado com a própria alma.

“A sobriedade não é o oposto de prazer. É a abertura para um novo tipo de prazer: o da presença.” Gabor Maté

Esse tipo de prazer não é performático. Não precisa de aplausos, curtidas ou conquistas extraordinárias. Ele se revela nas coisas simples: uma xícara de café quente, uma conversa honesta, o cheiro da chuva, o som do próprio riso.

É esse prazer que sustenta a escolha de ficar.

 

O COMPROMISSO DE NÃO FUGIR MAIS

Voltar para casa é um ato. Ficar é um compromisso.

Você vai querer fugir de novo. Vai ter dias em que o passado vai bater à porta com flores falsas. Vai ter horas em que tudo parecerá mais fácil com um gole. Mas aí você se lembra do caminho percorrido. Da força que construiu. Da paz que começa a habitar suas entranhas.

“A verdadeira viagem de descobrimento não consiste em procurar novas paisagens, mas em ter novos olhos.” Marcel Proust

Você olha para dentro com novos olhos. E vê: esse lar sou eu. Sou feito de ruínas, mas também de poesia. De rachaduras, mas também de luz.

A sobriedade não é perfeição. É presença. É impermanência acolhida. É a coragem de continuar voltando, mesmo quando tudo em você quer partir.

 

MORADA, VERBO E VERBO

Sobriedade é substantivo e é verbo. É casa e caminho. É fim e começo.

É o retorno mais sagrado que alguém pode fazer: o retorno a si mesmo.

“Você não precisa ser consertado. Você precisa ser acolhido.” Brené Brown

E talvez, no fim das contas, não haja lar mais seguro do que esse: o de ser quem você é, sem precisar de anestesia.

Então, se hoje você está nesse percurso, lembre-se: voltar para o lar é só o começo. A verdadeira arte é ficar. E nesse ficar, tudo muda.

 


Rafa Pessato

Especialista em Autoconhecimento e Comportamento

Rafapessato.eu