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SAÚDE MENTAL E ÁLCOOL: o que abebida está fazendo com a sua mente?

“O álcool me exasperava a tristeza e me deixava entregue a pavores noturnos, sem causa.” (Lima Barreto, Diário do Hospício)

Há um momento, silencioso e quase sempre solitário, em que o alcoolista percebe que o álcool não é mais apenas uma bebida — é uma lente trincada através da qual ele enxerga o mundo e a si mesmo. Essa lente distorce tudo: a memória, o humor, o sono, as emoções, a autoconfiança e, sobretudo, a saúde mental.

A frase de Lima Barreto, escrita dentro de um hospício, não é literatura romântica. É diagnóstico. O álcool exaspera a tristeza, entrega o corpo aos pavores, corrói o juízo mesmo quando o gole parece pequeno demais para causar tanto estrago. Ele faz isso porque é, de fato, um depressor do sistema nervoso central, uma substância que reduz a atividade neural, prejudica a comunicação entre os neurônios e altera a química cerebral que regula humor, memória, medo e impulsos.

Mas o problema não está apenas no que o álcool faz no corpo — está no pacto silencioso que muitos dependentes fazem consigo mesmos: “Beber alivia”. Só que quase nunca alivia. Quase sempre agrava. E quando agrava, o alcoolista bebe mais. E quando bebe mais, adoece mais. E quando adoece mais, perde ainda mais o controle sobre si.

Saúde mental e álcool não caminham lado a lado. Caminham um puxando o outro para o abismo.

E é justamente por isso que precisamos falar sobre o que a bebida causa na mente.

 

O CÉREBRO SOB EFEITO ALCOÓLICO: O QUE REALMENTE ACONTECE?

Apesar da sensação inicial de relaxamento, desinibição e leveza, o álcool age como um depressor que:

  • diminui a atividade do córtex pré-frontal (área responsável por decisões, autocontrole, planejamento, foco);
  • aumenta a ação do GABA, neurotransmissor inibitório;
  • reduz glutamato, afetando memória e raciocínio;
  • altera dopamina, criando reforço artificial de prazer;
  • desregula serotonina, contribuindo para tristeza, irritabilidade e ansiedade;
  • afeta o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal, interferindo nos hormônios do estresse.

Somado a isso, o álcool afeta o sono, produz microdespertares, reduz sono REM, potencializa pesadelos e prejudica descanso emocional. O resultado? Um cérebro cansado, reativo e ansioso.

É por isso que muitos alcoolistas relatam:

  • pânico ao acordar;
  • crises de choro sem motivo;
  • paranoia leve;
  • irritabilidade;
  • lapsos de memória;
  • sensação de “mente em frangalhos”;
  • aumento da impulsividade;
  • queda da autoestima;
  • dificuldade de sentir prazer sem beber.

O álcool não só bagunça a mente — ele desestrutura a capacidade de lidar com ela.

 

COMORBIDADES: QUANDO A BEBIDA ABRE PORTAS QUE VOCÊ NÃO CONSEGUE FECHAR

Ao longo do tempo — meses, anos, décadas — o álcool se torna terreno fértil para comorbidades. Elas não acontecem porque o alcoolista é fraco, mas porque a química cerebral é moldável, influenciável e vulnerável ao uso repetido.

As comorbidades mais frequentes associadas ao consumo abusivo de álcool incluem:

  • Depressão maior
  • Transtorno de ansiedade generalizada
  • Ataques de pânico
  • Transtorno de estresse pós-traumático
  • Transtorno bipolar (com piora significativa do curso quando há consumo)
  • Transtorno de personalidade borderline (impulsividade e desregulação emocional aumentadas pela bebida)
  • Transtornos do sono
  • Ideação suicida
  • Transtorno cognitivo leve, que pode evoluir para demência alcoólica
  • Psicoses induzidas por álcool
  • Síndrome de Wernicke-Korsakoff (grave comprometimento de memória e coordenação)

Mas a pergunta-chave é:

O alcoolismo causa transtornos mentais ou os transtornos mentais causam alcoolismo?

 

O PARADOXO DE TOSTINES DA MENTE: O QUE VEM PRIMEIRO, O TRANSTORNO OU O ÁLCOOL?

O famoso dilema publicitário — “vende mais porque é fresquinho ou é fresquinho porque vende mais?” — funciona perfeitamente para explicar a relação entre álcool e saúde mental.

O álcool pode precipitar transtornos mentais.

 E transtornos mentais podem precipitar o uso de álcool.

É uma engrenagem que se retroalimenta.

Um alcoolista pode beber porque está ansioso — mas também pode estar ansioso porque bebe. Pode beber para esquecer a dor — mas a dor aumenta porque ele bebe. Pode beber para apagar memórias traumáticas — mas a bebida intensifica o trauma, fragmentando a mente, criando lapsos e dissociações.

Essa bola de neve, quando desce a montanha, vira avalanche.

E não é fraqueza. É neuroquímica.

O álcool, quando ingerido repetidamente, cria dependência, altera o sistema de recompensa, fragiliza o mecanismo de autocontrole e empurra a mente para estados cada vez mais vulneráveis. Daí a importância de romper o ciclo não só no copo, mas na cabeça.

 

SAÚDE MENTAL NÃO É FANTASMA — É RESPONSABILIDADE

Há quem veja saúde mental como mistério, azar, energia negativa ou ataque espiritual. E, por crença, muitos se sentem mais seguros carregando amuletos, medalhas, terços e crucifixos. Não há mal nenhum nisso — o ritual também pode ser cuidado simbólico. A fé é diálogo, não prisão.

Mas o ponto é simples e direto:

Saúde mental não é fantasma. É biologia. É comportamento. É prática diária. É responsabilidade.

Se apontar o crucifixo te traz segurança, faça isso. Mas faça também: tratamento, terapia, abstinência, rotina, regulação emocional, pedir ajuda e abrir o jogo com sinceridade radical.

Assim como ninguém melhora uma dor de estômago rezando apenas, ninguém cura dor psíquica fechando os olhos para ela.

O alcoolista, muitas vezes, trata a mente como se fosse uma caixa misteriosa, cheia de medos proibidos. Quando sente dor, tenta ignorar, empurrar, silenciar com bebida. Só que silenciar não resolve. A dor psíquica não obedece ao copo.

A dor psíquica precisa ser atravessada, como dizia um Carl Gustav Jung: não se ilumina a escuridão imaginando luz, mas tornando consciente o que é sombrio.

 

O QUE O ÁLCOOL FAZ COM QUEM VOCÊ É

Se a mente fosse uma casa, o álcool entraria pela janela sem ser convidado, derrubando móveis internos, apagando luzes e deixando portas trancadas por dentro. Ele reorganiza silenciosamente a estrutura psíquica, distorce percepções e confunde o alcoolista até que ele já não saiba onde termina a bebida e começa o “eu”.

Os efeitos subjetivos mais comuns relatados por alcoolistas são:

  • sensação de inadequação constante;
  • medo de perder o controle sobre as emoções;
  • vergonha crônica;
  • comparação social intensa;
  • dificuldade de sentir pertencimento;
  • confusão de identidade (“quem eu sou sem beber?”);
  • dependência emocional da sensação alcoólica;
  • culpa seguida de alívio momentâneo seguido de recaída;
  • profunda dificuldade de fazer escolhas autênticas.

É como se o álcool sequestrasse o eixo da autenticidade. Ele impede que o alcoolista se escute. Impede que perceba suas reais necessidades. Impede que reconheça seu próprio valor — não o valor que aparece na mesa do bar, mas o valor que sustenta decisões, limites, vínculos e autoestima.

 

E QUANDO O ÁLCOOL VIRA SEGUNDA PELE?

Há fases do alcoolismo em que a pessoa não bebe para se divertir, mas para sobreviver ao próprio desconforto interno. O álcool vira:

  • anestesia;
  • fuga;
  • estratégia inconsciente de evitar a dor;
  • regulador emocional improvisado;
  • companhia nas madrugadas;
  • muleta identitária;
  • ritual de pertencimento.

Só que nenhuma dessas funções resolve o problema. Apenas posterga. E quando posterga, piora.

A mente vira um quarto mal ventilado, onde tudo se acumula: mágoas, traumas, raivas, medos e a sensação de que “algo está errado comigo”.

Mas não está “errado”. Está adoecido.

E o adoecimento não é culpa — é chamada.

 

O QUE A CIÊNCIA DIZ: DADOS QUE NÃO DÁ PARA IGNORAR

A OMS (Organização Mundial da Saúde) aponta que 3 milhões de mortes por ano são atribuídas ao uso abusivo de álcool. No Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde e da Fiocruz, o álcool está entre as principais causas de internações psiquiátricas, violência doméstica, acidentes e suicídios.

Mais dados importantes:

  • 1 em cada 3 pessoas que têm depressão apresenta uso abusivo de álcool.
  • Alcoolistas têm risco até 5 vezes maior de transtornos de ansiedade.
  • O consumo crônico altera permanentemente circuitos cerebrais ligados à motivação.
  • O álcool está relacionado a mais de 200 doenças, físicas e mentais.
  • Em 2023, segundo IWSR (Instituto Internacional de Pesquisa em Vinhos e Bebidas Alcoólicas), houve aumento significativo de consumo abusivo entre jovens adultos no Brasil.

 

CUIDAR DA SAÚDE MENTAL É MAIS URGENTE DO QUE PARAR DE BEBER — E OS DOIS ACONTECEM JUNTOS

Parar de beber não é apenas um ato comportamental. É um ato psíquico, existencial, emocional e espiritual. É olhar para si com brutal honestidade. É reconhecer feridas antigas. É sair do torpor que a bebida produz. É assumir responsabilidade pelos próprios limites.

Muita gente acha que “primeiro precisa arrumar a cabeça, depois parar de beber”. Mas a verdade é que:

parar de beber é forma de arrumar a cabeça.

É a porta que abre espaço para:

  • sonhos voltarem;
  • memória clarear;
  • ansiedade reduzir;
  • autoimagem melhorar;
  • relações serem reconstruídas;
  • autoconfiança renascer;
  • autenticidade florescer.

É o começo de uma vida onde você se pertence.

E saúde mental saudável é isso: pertencer a si.

 

A MENTE PEDE O QUE O ÁLCOOL NÃO ENTREGA

O álcool promete paz, mas entrega ruído.

 Promete coragem, mas entrega impulsividade.

 Promete amor, mas entrega carência.

 Promete alívio, mas entrega desespero.

 Promete liberdade, mas entrega prisão.

E nenhuma prisão é tão perigosa quanto aquela em que o carcereiro mora dentro da nossa cabeça.

Cuidar da saúde mental é fazer o que Lima Barreto não conseguiu fazer a tempo: nomear a tristeza antes que ela vire pavores noturnos. É atravessar a escuridão. É devolver ao cérebro o direito de respirar. É colocar a vida no centro — não a bebida.

Porque a mente não precisa de álcool.

 A mente precisa de você.

 


Rafa Pessato

Especialista em Autoconhecimento e Comportamento

http://rafapessato.eu