(e a coragem de não se perder pelo caminho)
Há dores que ninguém posta. Dores que não têm selfie, que não cabem em “stories” de 15 segundos, que não são debatidas em mesas de bar porque, ironicamente, é no bar que elas começam a sangrar. Uma dessas dores é a de perceber que o amor — aquele amor que você jurou que sustentaria o impossível — já não sustenta sequer o básico. E que ficar pode ser, silenciosamente, a forma mais cruel de abandono de si.
Esse texto não é uma apologia ao divórcio. É um chamado à autenticidade. Porque nem sempre amar significa permanecer, e nem sempre partir significa desistir. Às vezes, a separação é justamente o gesto mais sóbrio que alguém pode fazer quando vive ao lado de uma pessoa atravessada pelo alcoolismo — ou quando é essa pessoa.
O álcool não destrói apenas fígados; destrói ambientes, destrói silêncios, destrói noites de sono. O alcoolismo é um sintoma que contagia quem convive, que altera o clima afetivo de uma casa inteira, que gera medo no lugar onde deveria haver descanso, alerta no lugar onde deveria haver aconchego. Não é exagero. Não é drama. É realidade.
Estudos da American Psychological Association mostram que parceiros de dependentes apresentam índices muito mais altos de ansiedade, depressão e sintomas semelhantes ao estresse pós-traumático. Viver com alguém refém da compulsão é viver com o corpo sempre preparado para impacto: o impacto da recaída, o impacto da promessa quebrada, o impacto da noite mal dormida, o impacto da solidão acompanhada.
E, quando a alma passa muito tempo em alerta, ela adoece.
O DESGASTE SILENCIOSO DE QUEM FICA
Ninguém nos prepara para a exaustão de amar um alcoolista. Falam sobre “apoiar”, “ajudar”, “cuidar”, mas ninguém fala sobre o preço. O preço de viver com medo de abrir a porta e encontrá-lo embriagado. O preço de explicar para os filhos por que o pai (ou a mãe) não apareceu na apresentação da escola. O preço de ser responsável pelas contas, pela rotina, pela casa — enquanto o outro se afunda em algo que parece mais forte que ele mesmo.
E há ainda um preço maior: o preço de se perder tentando salvar quem não pediu para ser salvo.
O alcoolismo é um fenômeno complexo. Ele não nasce do nada. Ele serve a algo. Ele mascara dores, amortiza angústias, silencia gritos internos. É, muitas vezes, a tentativa trágica de sobreviver ao próprio vazio. Mas conviver com isso exige mais do que amor: exige estrutura, limites, presença e, às vezes, afastamento.
Kierkegaard dizia que o desespero é quando a pessoa deixa de ser si mesma. E quantas relações não se tornam exatamente isso? Duas pessoas vivendo um desespero compartilhado — uma pela bebida, outra tentando impedir que o mundo desabe.
O AMBIENTE QUE DEIXA DE SER LAR
Winnicott lembrava que ninguém cresce em solo hostil. Para existir com autenticidade, é preciso um ambiente suficientemente bom, que apoie, que sustente, que permita respirar. Mas quando a relação se transforma em território de medo, ressentimento ou caos, ela deixa de ser ambiente; vira campo de batalha.
E não há sobriedade possível quando se vive em guerra.
Separar, então, pode não ser fuga. Pode ser proteção. Pode ser o último limite saudável de alguém que tentou tudo — absolutamente tudo — para que o vínculo sobrevivesse, e percebeu que salvar o vínculo custaria a própria sanidade.
É aqui que Nietzsche entra pela porta da frente: “Tornar-se quem se é” exige atravessar perdas. Perder expectativas, perder histórias que nunca aconteceram, perder o ideal de família perfeita, perder o sonho que foi prometido no começo — quando o sorriso dele ainda tinha brilho e as noites ainda eram leves.
O rompimento, nesse contexto, pode ser o início da reconciliação consigo mesmo.
FICAR PODE SER AMOR. IR EMBORA TAMBÉM
A cultura nos ensinou que ficar é prova de lealdade. Que ir embora é egoísmo. Que família se mantém a qualquer custo. Mas esse “qualquer custo” costuma sair caro demais — especialmente para quem convive diariamente com a dependência.
Ficar pode ser lindo.
Se houver reconhecimento do problema.
Se houver tratamento.
Se houver presença.
Se houver compromisso com a sobriedade — não apenas do alcoolista, mas da relação.
Mas ir embora também pode ser lindo.
Se for a única forma de não se anular.
Se for o único jeito de respirar novamente.
Se for o passo necessário para retomar a própria vida.
Separar não é abandono.
É recusar-se a afundar junto.
É a coragem de dizer:
“Eu te amo, mas eu também existo.”
“Eu quero você bem, mas eu preciso estar bem.”
“Eu não vou me perder pelo caminho.”
Há amor nisso. Um amor mais maduro que a fantasia de eternidade.
A SOBRIEDADE AFETIVA
A sobriedade não diz respeito apenas ao álcool. É também sobriedade emocional, sobriedade dos vínculos, sobriedade das escolhas.
É escolher relações que tragam clareza, não névoa.
É escolher conversas que iluminem, não confundam.
É escolher laços que sustentem, não aprisionem.
Dependência — seja da substância, seja do relacionamento — sempre rouba autenticidade. Sempre exige negociação interna demais. Sempre cobra um pedágio invisível que, aos poucos, esgota a alma.
Mas quando alguém decide separar com consciência, no lugar da culpa surge algo raro: a lucidez. A lucidez de enxergar que não é possível salvar ninguém sem que essa pessoa queira ser salva. A lucidez de perceber que a própria vida também importa. A lucidez de entender que amor que destrói não é amor — é apego, é medo, é esperança intoxicada.
A RECAÍDA DO VÍNCULO
Existe recaída também dentro das relações.
Não só do alcoolista — mas do casal.
A recaída do “vai ser diferente”.
A recaída do “agora vai”.
A recaída das promessas vazias.
A recaída do “eu mudo”, sem mudança concreta.
A recaída do “eu aguento mais um pouco”.
Até que alguém acorda um dia e percebe:
a pior recaída é a de continuar onde se adoece.
Separar, então, é o gesto mais sóbrio que se é capaz de fazer.
O INÍCIO DE UM CAPÍTULO POSSÍVEL
A separação pode doer mais que a permanência. Pode paralisar. Pode fazer chorar durante semanas. Pode despedaçar todas as certezas. Mas, ao mesmo tempo, pode abrir espaço. Espaço para respirar. Espaço para reorganizar a vida. Espaço para reconstruir a própria relação consigo — e quem sabe, lá na frente, com outro alguém.
Como dizia Clarice Lispector, “liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome.”
Talvez o que você deseje também não tenha nome ainda: paz, leveza, silêncio bom, noites inteiras de sono, rotina sem medo. Isso tudo também é amor — amor por si mesmo.
E, quando alguém se reencontra, o mundo volta a se recompor.
Separar pode ser o fim de um ciclo, mas raramente é o fim da história. Porque histórias verdadeiras continuam — às vezes com o mesmo outro, quando há reconstrução; às vezes com outro caminho; às vezes com a descoberta mais profunda de todas: a de que você não precisa se quebrar para provar que ama.
A sobriedade, afinal, é escolher a vida.
E, às vezes, escolher a vida é escolher partir.
Rafa Pessato
Especialista em Autoconhecimento e Comportamento











