“Pare de beber e sua vida vai melhorar.”
Essa é a promessa que muitos escutam ao iniciar o processo de recuperação do alcoolismo. E, de fato, há melhoras: físicas, sociais, cognitivas. O corpo desincha, a mente clareia, a conta bancária respira. Mas algo inquietante pode acontecer também: a dor emocional, antes amortecida pelo álcool, emerge com força. E aí, o que era anestesiado com uma bebida pode começar a ser sufocado com sexo, pornografia ou relações impulsivas.
Sim, muitos descobrem, no silêncio da sobriedade, que a abstinência é só o primeiro passo. Porque o vício nunca foi apenas sobre o álcool — foi uma tentativa de solução para dores mais profundas. E, quando ele sai de cena, outras compulsões batem à porta.
Este artigo é um convite para olhar com profundidade para essa dança entre compulsões: como o vício em álcool e a compulsão sexual se entrelaçam, o que há por trás da transferência de comportamentos, e, sobretudo, o que pode ser feito para quebrar o ciclo — sem quebrar a si mesmo no processo.
COMPULSÕES: DIFERENTES FORMAS, MESMO VAZIO
Compulsão é um comportamento repetitivo, impulsivo e muitas vezes automático, usado como uma forma de lidar com um sofrimento interno. Ela pode se expressar de muitas maneiras: beber sem conseguir parar, fazer sexo sem pensar nas consequências, consumir pornografia de forma descontrolada, comer compulsivamente, comprar, trabalhar até a exaustão.
No fundo, todas essas formas têm algo em comum: não são sobre prazer, são sobre fuga.
A pessoa não busca o vinho pela experiência sensorial ou o sexo pela intimidade genuína — mas pelo alívio momentâneo de um incômodo que parece insuportável. Tédio, solidão, ansiedade, dor emocional, traumas antigos. A compulsão vem como um botão de desligar a mente.
Como diz Gabor Maté, médico canadense especialista em vícios:
“A questão não é ‘por que o vício?’, e sim ‘por que a dor?’”
ALCOOLISMO E COMPULSÃO SEXUAL: UMA ASSOCIAÇÃO FREQUENTE
O que parece, à primeira vista, dois problemas distintos — alcoolismo e hipersexualidade — na verdade compartilham caminhos semelhantes no cérebro e nas emoções.
Segundo as Diretrizes para o Diagnóstico e Tratamento de Comorbidades Psiquiátricas e Transtornos por Uso de Substâncias da ABEAD, a comorbidade entre o Transtorno por Uso de Substâncias (TUS) e o Transtorno Hipersexual é altamente prevalente: entre 39% e 71% dos casos, sendo o álcool a substância mais comumente associada, em cerca de 40% dos casos (Mick & Hollander, 2006).
Não se trata de coincidência, mas de conexão.
O álcool, como depressor do sistema nervoso central, reduz inibições, facilitando comportamentos impulsivos — inclusive sexuais. Por outro lado, a compulsão sexual pode ser usada para lidar com a culpa, ansiedade e vazio que emergem na ressaca física e emocional da bebedeira. Assim, uma compulsão retroalimenta a outra.
A ARMADILHA DA SUBSTITUIÇÃO: A TRANSFERÊNCIA DE COMPULSÕES
É comum que, ao parar de beber, a pessoa comece a apresentar outros comportamentos compulsivos. Às vezes discretos, às vezes escancarados. Sexo sem freio, pornografia diária, masturbação compulsiva, busca incessante por relacionamentos ou validação.
Esse fenômeno é conhecido como transferência de compulsões: quando o indivíduo, ao se ver privado de um vício, desloca sua necessidade de alívio para outro comportamento, que passa a cumprir a mesma função emocional.
E isso não significa falta de força de vontade. Significa que o sofrimento interno continua, e o repertório emocional para lidar com ele ainda não foi construído.
A FUNÇÃO EMOCIONAL DO VÍCIO
Toda compulsão é, em algum nível, um suporte psíquico. Um paliativo — mal-adaptado, mas eficaz a curto prazo.
O vício pode ser um anestésico contra traumas, abusos, carências afetivas, estados depressivos ou crises existenciais.
Por isso, tratá-lo apenas como “mau comportamento” ou “fraqueza moral” é cruel e contraproducente. O comportamento precisa ser interrompido, sim, mas o que ele encobria precisa ser acolhido.
Sem isso, o sujeito pode até se manter sóbrio, mas viver em constante desconforto, culpa ou vazio — o que facilita recaídas ou transferências compulsivas.
QUANDO O CORPO TENTA RESOLVER O QUE A ALMA CALA
A sexualidade é um dos canais mais profundos da experiência humana. Quando usada de forma compulsiva, ela deixa de ser ponte e vira fuga.
Compulsão sexual não é sobre libido exagerada. É sobre usar o sexo como tentativa de autorregulação emocional — o mesmo papel que o álcool costumava cumprir.
Em muitos casos, pessoas com compulsão sexual relatam sentimentos de:
vergonha e culpa após os episódios;
perda de controle sobre seus impulsos;
isolamento social por medo do julgamento;
ansiedade, depressão e baixa autoestima;
dificuldade em estabelecer vínculos afetivos genuínos.
E a pornografia, com sua gratificação imediata e acessibilidade, se torna um escape fácil — e silencioso. Mas profundamente tóxico quando usado compulsivamente.
AMPLIAR O REPERTÓRIO: O CAMINHO DA RECONSTRUÇÃO
Se o vício era um suporte, a saída não pode ser apenas a retirada.
É preciso construir algo novo no lugar.
Isso significa desenvolver estratégias reais para lidar com o desconforto, com as emoções cruas, com a frustração, o medo, o tédio, a raiva, a solidão. Significa entender que sentir é parte da vida — e que a dor, quando encarada, pode nos transformar.
Algumas ferramentas fundamentais para esse processo: Psicoterapia especializada, psicanálise, grupos de apoio (como Alcoólicos Anônimos ou grupos específicos para compulsão sexual/pornografia), práticas de autorregulação emocional (como mindfulness, respiração consciente, exercícios de grounding), criação de rotinas saudáveis (com atividades físicas, expressão artística, espiritualidade, vínculos reais) e educação emocional (aprender a nomear o que se sente, a pedir ajuda, a dizer não, a lidar com a vulnerabilidade).
VOCÊ NÃO É SEU VÍCIO
O vício é parte da sua história — mas não define quem você é. Ele é, muitas vezes, a tentativa mais honesta que você encontrou de sobreviver a uma dor que ninguém via. E agora que você começa a enxergar, não se culpe: acolha.
A saída não é trocar um vício por outro, mas abrir espaço para uma vida com mais presença, mais consciência, mais verdade.
Vai doer? Sim. Mas é dor de parto.
Porque você está renascendo.
ESCUTE O QUE A COMPULSÃO ESTÁ DIZENDO
Você não está sozinho. Não está doente de vontade fraca, mas de um mundo que nos ensina a calar a dor com anestesias rápidas. Mas o corpo fala. A alma sussurra. E a compulsão grita. Então pare. Escute.
Não com culpa, mas com curiosidade. O que você está tentando resolver com o álcool? O que você está tentando apagar com o sexo? O que há debaixo desse comportamento? A resposta não virá de fora, nem de forma mágica. Mas ela virá — quando você tiver coragem de olhar.
E aí, sim, a verdadeira liberdade começa.
Rafa Pessato
Especialista em Autoconhecimento e Comportamento