Sabe quando a gente quer muito uma coisa, mas parece que algo dentro da gente mesmo atrapalha? A gente diz que vai fazer, mas não faz. Começa com gás, mas para no meio. Promete que dessa vez vai ser diferente, e acaba voltando pro mesmo lugar.
Pois é. Isso tem nome: autossabotagem.
E não, não é falta de força de vontade. Nem frescura. Nem preguiça.
Autossabotagem é um mecanismo inconsciente de proteção. Nosso cérebro, lá nas suas camadas mais primitivas, quer nos manter vivos e seguros — e segurança, pra ele, significa “ficar no que é conhecido”. Mesmo que o conhecido esteja ruim.
Por isso, toda vez que você pensa em fazer algo novo, desafiador ou fora da sua zona de conforto, ele aciona um sistema de alarme. Esse sistema envolve estruturas como a amígdala cerebral, responsável por identificar ameaças e preparar o corpo pra reagir. O neurocientista Joseph LeDoux explica que esse alarme emocional é acionado em milissegundos, antes mesmo da gente pensar racionalmente sobre o que está acontecendo.
É como se o cérebro dissesse:
“Melhor não.”
“Fica aqui onde é seguro.”
“Você já tentou antes e deu errado, lembra?”
E assim a gente se sabota. Sem perceber. Sem querer.
O CICLO DA AUTOSSABOTAGEM, NA PRÁTICA
Ao longo dos anos de estudo, prática e também pela minha própria experiência de vida, percebi que a autossabotagem não acontece do nada. Ela tem um roteiro. Um looping. Um ciclo.
E entender esse ciclo é o primeiro passo pra romper com ele.
Eu costumo dividir esse ciclo assim:
1. O gatilho
Tudo começa com algo que nos tira do eixo. Pode ser uma cobrança, uma comparação, um medo, um vazio, uma crítica, um desejo profundo. O gatilho é como uma pedra jogada na água: ele agita o sistema interno.
Nesse momento, nosso sistema nervoso entra em alerta. A resposta de luta, fuga ou congelamento é ativada. Isso não é escolha consciente — é fisiológico. É o corpo tentando nos proteger.
2. Os pensamentos automáticos
Logo depois do gatilho, a mente começa a disparar pensamentos.
“Você não é bom o bastante.”
“Pra quê tentar se vai falhar de novo?”
“Você sempre estraga tudo.”
Esses pensamentos vêm das nossas crenças centrais — ideias formadas lá atrás, na infância, e reforçadas ao longo da vida. Aaron Beck, criador da Terapia Cognitivo-Comportamental, mostrou como essas crenças moldam nossa forma de pensar e agir. Elas criam filtros. E a gente passa a ver tudo por esses filtros distorcidos.
3. A fuga
Sentir tudo isso é desconfortável demais. Então a gente tenta escapar. Como?
– Se distraindo compulsivamente
– Procrastinando
– Enchendo a agenda de coisas sem sentido
– Ou usando algum tipo de anestesia (como comida, álcool, redes sociais, pornografia, compras)
É aqui que entra o que o psiquiatra Viktor Frankl chamava de “neurose do domingo” — aquele vazio existencial que aparece quando o barulho do mundo silencia e a gente se dá conta de que não sabe o que está fazendo da vida. Muita gente bebe, come, se ocupa, justamente pra não entrar em contato com esse vazio.
Só que essa fuga não resolve. Só adia o desconforto.
4. A consequência
Depois da fuga, vem a frustração. A culpa. A vergonha. O arrependimento.
Você se sente derrotado. E reforça o pensamento inicial:
“Tá vendo? Eu não consigo.”
“Eu sou assim mesmo.”
“Não adianta tentar.”
E assim, o ciclo se fecha.
MAS POR QUE A GENTE FAZ ISSO?
Porque o cérebro é teimoso. E eficiente.
Ele adora repetição. Quanto mais você age de determinada forma, mais esse caminho se fortalece. É como se cada comportamento repetido criasse uma trilha no seu cérebro — e o cérebro adora seguir trilhas prontas. Charles Duhigg, no livro O Poder do Hábito, mostra como os hábitos são formados por um loop de gatilho, rotina e recompensa. A autossabotagem, no fundo, é um hábito emocional.
Além disso, tem um fator biológico importante: a gente busca alívio. Quando foge, procrastina ou se distrai, o cérebro libera dopamina, o tal do “hormônio da recompensa”. Você sente um alívio momentâneo — e é isso que o cérebro registra.
Ou seja: a autossabotagem dá uma recompensa rápida, mesmo que o preço venha depois.
COMO SAIR DESSE CICLO?
Ao longo do meu processo de superação do alcoolismo eu criei o Método CER – Ciclo Essencial de Realização, para me ajudar. Ele é um caminho de autoconhecimento que parte da desconexão e te ajuda a sair do automático a partir da realização.
O CER é formado por três etapas práticas e profundas:
1. Reflexão Integral
Aqui você para pra olhar. Sem julgamento. Sem pressa.
– Que padrão estou repetindo?
– Que dor estou tentando evitar?
– Que parte de mim eu estou ignorando?
É o momento de dar nome ao que está dentro. O autoconhecimento começa por aqui: assumindo o que se sente, reconhecendo as crenças, trazendo à luz o que estava escondido.
Essa fase se conecta com o conceito de “autenticidade existencial” que Rollo May descreve: só podemos mudar aquilo que aceitamos ver com verdade.
2. Reconexão Intencional
Depois de olhar pra dentro, é hora de se reconectar com o que realmente importa.
– Quais são os seus valores?
– O que te move de verdade?
– O que você precisa deixar pra trás?
Reconectar é relembrar quem você é antes das máscaras, dos vícios, dos medos. É se apropriar da sua potência e deixar de viver no piloto automático.
Jon Kabat-Zinn, criador da abordagem de mindfulness, diz que viver com atenção plena é “estar onde se está, com o que se está fazendo, como se sua vida dependesse disso. Porque depende.”
3. Realização Efetiva
A terceira etapa é a mais visível. Ela ajuda tangibilizar todo o processo de mudança.
É aqui que você age, dando vida a um projeto essencial. Não por impulso, mas por intenção.
Não pra agradar os outros, mas pra ser fiel a você.
Não porque é fácil, mas porque faz sentido.
Realizar, no CER, não é fazer por fazer. É dar passos que refletem o que você descobriu nas duas fases anteriores. É um fazer com presença.
UM EXEMPLO DA VIDA REAL (QUE TALVEZ SEJA O SEU)
Imagine uma pessoa que quer parar de beber. Ela já percebeu que o álcool não está servindo mais. Mas toda vez que tenta parar, volta. E se culpa. E se esconde. E sente vergonha. E promete que vai ser a última vez — e não é.
Essa pessoa não precisa de mais regras, nem de bronca, nem de vergonha. Ela precisa de acolhimento, consciência e estratégia.
Com o CER, ela pode:
– Refletir: “Que dor estou tentando anestesiar com a bebida?”
– Reconectar: “Quais valores estou traindo quando bebo?”
– Realizar: “Qual projeto colocar em prática, mesmo com medo?”
É assim que a gente quebra o ciclo. Com presença e ação. Com verdade. Com decisão silenciosa — como eu gosto de dizer.
A AUTOSSABOTAGEM NÃO É DEFEITO. É PEDIDO.
Se tem algo que eu aprendi desde que saí do coma alcoólico e comecei minha própria reconstrução interna é que a gente não se sabota porque quer se destruir — a gente se sabota porque está tentando sobreviver com as ferramentas que tem.
Só que agora você pode ter outras ferramentas. Mais alinhadas com quem você quer ser. Mais coerentes com a vida que você deseja construir.
Você não está quebrado.
Você está em transição.
E toda transição exige coragem — mas não a coragem de lutar contra si mesmo.
A coragem de voltar pra casa. Para si. Para o que é essencial.
E é disso que o CER trata.
De te lembrar que você pode quebrar o ciclo.
Não com pressão, mas com presença.
Com carinho,
Rafa Pessato
Especialista em autoconhecimento e comportamento
Criadora do Método CER – Ciclo Essencial de Realização