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O QUE O VÍCIO ESTÁ TENTANDO TE DIZER (e você insiste em não escutar)?

Imagine um alarme de incêndio disparando repetidamente. Você corre até ele e tenta desligar o barulho. Consegue. Silêncio. Alívio. Mas, ao sair da sala, o cheiro de fumaça ainda está lá. O fogo, invisível, continua crescendo. Agora imagine que esse alarme é o seu vício. E o incêndio é tudo aquilo que você se recusa a sentir.

 

O VÍCIO TRAZ UMA MENSAGEM SE VOCÊ SE DISPOR A OUVIR

Num mundo que valoriza o desempenho mais do que a presença, o controle mais do que a entrega e o silêncio das emoções mais do que seu fluxo natural, o vício se apresenta como uma tentativa do corpo-mente de continuar vivendo… mesmo quando a alma já está pedindo socorro. Em outras palavras: o vício é uma linguagem, não apenas um inimigo. É uma forma desesperada do seu sistema inteiro tentar expressar algo que você ainda não ousou escutar.

Carl Gustav Jung, psiquiatra suíço e pioneiro da psicologia analítica, afirmava que “aquilo a que você resiste, persiste.” O vício é, muitas vezes, esse “aquilo” persistente: não só um comportamento repetitivo, mas um pedido não atendido, um grito abafado, uma dor deslocada.

 

COMPULSÃO COMO ORÁCULO

A compulsão, em sua essência, é um deslocamento. Ninguém é viciado em álcool, comida, sexo, redes sociais ou trabalho. Somos viciados na promessa oculta de alívio, pertencimento ou poder que cada uma dessas experiências oferece. O vício é o mensageiro — não o conteúdo. E mais do que um transtorno, ele é um oráculo.

Se escutarmos com atenção, cada compulsão carrega uma frase que ainda não conseguimos dizer. Algo como:

“Eu preciso desaparecer por um tempo.”

“Eu não aguento sentir tudo isso.”

“Eu quero ser outra pessoa.”

“Eu quero parar o tempo.”

“Eu não me reconheço.”

“Eu só quero voltar a sentir algo bom.”

O filósofo Martin Heidegger dizia que o ser humano está “condenado à abertura”, ou seja, somos estruturas abertas ao mundo, ao outro, ao tempo. Quando essa abertura se fecha, quando deixamos de tolerar a angústia que vem com o existir, muitas vezes a compulsão surge como tentativa de reconexão — mesmo que disfuncional.

 

O CORPO FALA. MAS SUSSURRA, ATÉ GRITAR.

O vício é o grito do corpo quando a alma está exausta de ser ignorada. Na visão da psicossomática — especialmente no trabalho de autores como Pierre Weil e Jean-Yves Leloup — o sintoma físico ou comportamental é uma mensagem simbólica. Algo que não conseguimos elaborar mental ou emocionalmente se desloca para o corpo como um pedido de escuta.

Essa lógica também aparece na medicina tradicional chinesa e em diversas tradições indígenas, onde todo desequilíbrio físico ou psíquico é visto como desarmonia entre espírito e ambiente.

Gabor Maté, médico canadense e especialista em trauma e dependência, afirma em seu livro In the Realm of Hungry Ghosts:

“Não pergunte por que o vício. Pergunte por que a dor.

Essa mudança de pergunta é radical. Ela muda o foco da “culpa” para a “busca”. Do sintoma para a causa. Da punição para a escuta.

 

QUANDO A ALMA PEDE SOCORRO, MAS A SOCIEDADE RECEITA ANESTESIA

Vivemos numa cultura do alívio. A dor, a tristeza, o vazio existencial foram patologizados, medicalizados ou ridicularizados. Perdemos a escuta profunda, a pausa ritual, o acolhimento das passagens da alma. A angústia virou um erro de sistema. O silêncio virou perda de produtividade.

Nesse cenário, o vício se apresenta como a última tentativa de reconexão — distorcida, mas humana. É o corpo tentando sobreviver à insensibilidade. A mente tentando escapar da sobrecarga. A alma tentando voltar para casa.

Na lógica da alma — como diria James Hillman, pai da psicologia arquetípica — os sintomas não são erros, mas mapas. A alma não fala em palavras, mas em imagens, metáforas, impulsos. A compulsão, portanto, pode ser entendida como um símbolo. Ela nos conduz à parte da psique que está esquecida, abandonada ou reprimida. É como um sonho recorrente: só se dissolve quando o significado é compreendido.

 

O PEDIDO POR TRÁS DA REPETIÇÃO

Quando você se encontra mais uma vez no mesmo comportamento compulsivo, em vez de se perguntar “por que eu fiz isso de novo?”, experimente perguntar:

O que essa repetição está tentando resolver?

Que dor eu estava tentando evitar?

Que parte de mim foi deixada sozinha?

O que esse vício oferece, mesmo que por poucos segundos?

Essa escuta profunda é revolucionária. Não porque cura instantaneamente, mas porque reconstrói o vínculo com a sua verdade interna.

Muitas vezes, o que o vício está tentando te dizer é que você está vivendo uma vida que não suporta mais. Que está se violentando diariamente para caber em relações, trabalhos ou rotinas que vão na contramão do seu sentir. Que há um excesso de adaptação e uma carência de autenticidade. Que há um desejo esquecido pedindo passagem.

 

A FERIDA COMO CAMINHO

Rumi, poeta sufi do século XIII, escreveu:

“A ferida é o lugar por onde a luz entra em você.”

Na perspectiva do autoconhecimento profundo, o vício pode ser essa ferida. Um local de abertura. Um ponto de ruptura onde se inicia a transformação.

Mas isso exige coragem: a coragem de escutar o que dói. De olhar para o que foi evitado por anos. De se perguntar: quem eu seria se não precisasse mais me anestesiar?

A resposta nem sempre vem fácil. Mas é real. E só ela pode preencher o buraco que nenhuma droga, distração ou compulsão consegue.

 

DA CULPA AO CUIDADO: O INÍCIO DE UMA NOVA ESCUTA

A abordagem tradicional do vício ainda está muito presa à ideia de “erro moral”, “fraqueza de caráter” ou “falta de força de vontade”. Mas a ciência já sabe que essa narrativa está ultrapassada.

Hoje, estudos como os de Bruce Alexander (The Globalization of Addiction) mostram que o vício está muito mais ligado ao isolamento, à falta de pertencimento e à desconexão do que a qualquer falha pessoal. O vício não é um fracasso ético. É uma tentativa desesperada de sobreviver em um mundo desumanizante.

E se, em vez de combater o vício com mais rigidez, você pudesse acolhê-lo como um mensageiro? E se, ao invés de lutar contra o comportamento, você aprendesse a escutar o que ele veio ensinar?

 

ESCUTAR É VOLTAR PARA CASA

O que o vício está tentando te dizer, talvez, é que você está cansado. Que a vida como está não está te nutrindo. Que você precisa parar de performar força e começar a cultivar presença. Que o que você sente faz sentido. Que o buraco que sente não é falha, é saudade: saudade de si.

E que, talvez, a cura não esteja em prometer nunca mais cair… mas em nunca mais se abandonar.


Rafa Pessato

Especialista em autoconhecimento e comportamento

rafapessato.eu