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O QUE FICA E O QUE VAI EMBORA: reconstruindo a identidade na SOBRIEDADE

Às vezes, parar de beber é fácil. Difícil é continuar sóbrio sendo você mesmo.

Difícil é acordar todos os dias olhando para a própria cara — sem o filtro do álcool, sem o escudo da noite, sem o disfarce do riso fácil. Difícil é lidar com o silêncio que sobra quando o barulho do vício finalmente cala. Porque a sobriedade não devolve somente a consciência; ela devolve você. E isso, para quem passou anos fugindo de si, é tão assustador quanto libertador.

Reconstruir a identidade depois do alcoolismo é como voltar para uma casa antiga: as portas ainda rangem, os móveis estão fora do lugar, algumas paredes exibem rachaduras que você nunca tinha visto. E mesmo assim, algo ali — talvez o chão, talvez a memória — diz: “Ainda é sua. Refaça.”

O que fica e o que vai embora na sobriedade? A resposta é menos romântica do que parece. E mais real do que o mundo permite admitir.

O COMEÇO: QUANDO A BEBIDA VAI EMBORA E VOCÊ FICA

Quando o álcool sai da sua vida, ele leva muita coisa junto: rotina, relações, apelidos, convites, planos, horários, prazeres rotineiros, desculpas preferidas.

Mas deixa uma herança pesada: vazio.

O vazio que Nietzsche dizia ser o lugar onde a coragem se prova. O vazio que Freud descreveu como o espaço entre o desejo e o medo. O vazio que Clarice resumia como o intervalo onde a alma decide se cresce ou se esconde. É ali que começa a reconstrução.

Só que ninguém conta que o início da sobriedade é quase sempre uma demolição.

Você perde:

  • o papel de “engraçado do rolê”,
  • a identidade de “forte demais para se abalar”,
  • o rótulo conveniente de “aquela pessoa que bebe, mas é gente boa”,
  • os relacionamentos que só existiam porque vocês dividiam a embriaguez.

Vai embora a anestesia. Vai embora a coragem artificial. Vai embora a falsa intimidade. E junto com elas, você vê ir embora versões suas que, embora destrutivas, pareciam tão familiares que quase davam conforto.

O que sobra?

Sobra aquilo que você sempre foi — e aquilo que ainda não sabe como viver.

 

O DESERTO: OS PRIMEIROS MESES DE SILÊNCIO

Depois que o álcool cai, a poeira emocional sobe.

O corpo pede a substância, mas a alma pede sentido. É uma disputa que parece injusta: o vício tem estratégias claras, gatilhos emocionais específicos, horários marcados; a sobriedade não. A sobriedade chega crua.

Nos primeiros meses, parece que você não está construindo nada. Está apenas segurando os escombros para evitar que caiam de novo.

Esse período é pouco glamorizado, mas é onde a identidade começa a tomar forma. Porque é no deserto que você percebe:

  • do que sente falta,
  • do que não precisa,
  • do que nunca foi seu.

Alguns laços somem. Não porque você mudou de personalidade, mas porque eles só existiam para sustentar o seu vício. Quando você muda, a distorção some — e a relação cai.

Outros laços se fortalecem. Simplesmente porque passam a ver você, e não a sua bebedeira.

A verdade é que, no início da sobriedade, você perde muito mais do que ganha. Mas o que você ganha tem um peso que nenhuma garrafa jamais ofereceu: consciência.

 

O PESO DO QUE SOBRA

A parte mais dura da reconstrução não é o que vai embora. É o que fica.

Porque, se não trabalhada, fica:

  • A vergonha das recaídas.
  • A culpa acumulada dos anos anteriores.
  • O medo de decepcionar de novo.
  • O ressentimento por ter se permitido chegar tão fundo.
  • O corpo tentando equilibrar neuroquímica, humor e sono.
  • A mente tentando aprender a descansar sem colapsar.
  • O coração tentando entender o que é afeto sem intoxicação.

Fica também a sensação de começar tarde demais — como se todo mundo estivesse andando enquanto você ainda aprende a se levantar.

Mas não é verdade. Você não está atrasado; você está lúcido. E lucidez, no início, dói. Winnicott dizia que ninguém se encontra sem antes se perder. Na sobriedade, essa frase ganha contorno literal. Porque você se perde no vício… e finalmente se encontra no que restou.

 

QUEM VOCÊ ERA COM ÁLCOOL NÃO É QUEM VOCÊ É

O alcoolismo tem uma habilidade covarde: ele sequestra o que você tem de mais vivo e deixa só o operante, o automático, o programado.

Depois da sobriedade, você descobre que:

Não era tão “corajoso” — era desinibido.

Não era tão “sociável” — era anestesiado.

Não era tão “forte” — era insensível à própria dor.

Não era tão “engraçado” — era impulsivo.

Não era tão “livre” — era refém.

A identidade regada a álcool é uma performance. A identidade em sobriedade é uma revelação.

Você pode se ver um pouco tímido, sensível, calado, cuidadoso, profundo, ansioso, criativo, inseguro — e tudo isso parece novo, mas não é. Sempre foi você. Só estava abafado.

Reconstruir a identidade é aceitar que a versão bêbada não era a verdadeira, nem a pior — era apenas diferente; forjada no vício.

O PROCESSO DE RECONSTRUÇÃO: NOMEAR, LIMPAR, ESCOLHER

Depois de algum tempo sóbrio, algo começa a mudar. Devagar. Quase imperceptível. Primeiro, você nomeia o que sente — e isso já é uma vitória. Depois, percebe que pode segurar o desconforto sem fugir.

Aos poucos, tapa os buracos: ajusta rotinas, revisa relações, observa gatilhos emocionais, reconsidera prioridades. Você não está reconstruindo uma “nova identidade”. Está recuperando a sua — aquela que existia antes da bebida, aquela que tentou sobreviver durante o vício, aquela que agora finalmente tem espaço para respirar. E esse processo envolve escolhas — algumas dolorosas, outras libertadoras.

O que vai embora:

  • A necessidade de ser aceito por quem não te vê.
  • A vida social baseada em copos, não em conexões.
  • A pressa de resolver com álcool o que precisa de coragem.
  • A autossabotagem que você chamava de “meu jeitão”.
  • A compulsão que você confundia com prazer.

O que fica:

  • A sensibilidade que o álcool tentou matar.
  • A lucidez que você achava que não suportaria.
  • A criatividade que renasce quando você acorda inteiro.
  • A coragem verdadeira — não a líquida.
  • A vontade de ser honesto consigo mesmo.

 

QUANDO VOCÊ SE TORNA OUTRA PESSOA — E A MESMA

Não existe “voltar a ser quem você era”. Você não volta. E isso não é ruim. A sobriedade não te devolve ao passado. Ela te entrega ao presente. Você não resgata a versão de 10 anos atrás; cria uma versão que nunca existiu: a mesma essência, mas com novas ferramentas; o mesmo coração, mas com novos limites; a mesma história, mas com um capítulo que finalmente faz sentido.

Kierkegaard dizia que a vida só pode ser compreendida olhando para trás, mas só pode ser vivida olhando para frente. Reconstruir a identidade na sobriedade é exatamente isso: entender o que foi, mas caminhar para o que pode ser.

 

SUA IDENTIDADE SÓBRIA NÃO NASCE: ELA É ESCAVADA

A sobriedade não é construção — é escavação. Você tira camadas de medo, trauma, anestesia, autodefesa. Até encontrar algo que parecia perdido, mas estava ali: você.

A dependência cria versões adaptadas para sobreviver. A sobriedade cria versões inteiras para viver. E viver exige aceitar que identidade não é rótulo, não é personagem, não é função social: é movimento, escolha, responsabilidade.

Você muda. Porque viver sóbrio muda tudo. E porque finalmente você está vivo o bastante para escolher quem quer ser.

 

O QUE FICA, O QUE VAI E O QUE IMPORTA

No fim, reconstruir a identidade depois da sobriedade não é sobre descobrir quem você é. É sobre descobrir quem você consegue ser quando para de se destruir. Vai embora a parte que você achava necessária, mas te matava. Fica a parte que você achava frágil, mas te salva.

E entre perder e ficar, nasce algo que talvez você nunca tenha vivido: autenticidade — aquela que não vem da coragem líquida, mas da integridade de quem finalmente consegue viver sem fugir.

A identidade sóbria é simples e profunda ao mesmo tempo: você fica, o vício vai. E tudo aquilo que era verdade enfim aparece.


Rafa Pessato

Especialista em Autoconhecimento e Comportamento

rafapessato.eu