A exigência de se explicar diante do outro é uma prisão sem grades. Mais ainda quando esse outro já te julga antes da escuta. Quando ele espera, na verdade, apenas a chance de confirmar a tese que já criou sobre você. Você fala, ele não ouve. Você argumenta, ele distorce. Você se expõe, ele aponta o dedo e diz: “Viu? Eu sabia que era fraco.”
Há uma armadilha nesse jogo — e ela se chama justificativa compulsiva. O desejo neurótico de limpar sua imagem diante do tribunal da opinião alheia. Mas há um tempo em que se aprende: não vale a pena se explicar para quem não tem a escuta como ato ético, mas como arma de controle e superioridade moral.
O QUE ESTÁ EM JOGO?
Para a filosofia existencial, viver é assumir a responsabilidade pela própria existência. E isso inclui o direito inalienável de ser contraditório, incompleto, imperfeito — humano. Jean-Paul Sartre já dizia: “O inferno são os outros”. Não porque os outros sejam maus, mas porque muitas vezes se tornam espelhos deformados que impõem rótulos e nos olham não como somos, mas como querem que sejamos.
Já a psicanálise nos lembra que, por trás da compulsão de se explicar, habita o desejo inconsciente de “consertar” uma culpa. Uma culpa muitas vezes herdada, construída pelo olhar social sobre aquilo que foge da norma — como uma dependência, uma recaída, uma dor que não se dissolve fácil.
O problema é que explicar-se demais é uma forma de entregar sua existência ao outro. É implorar por um lugar que nunca virá. É se colocar na posição de objeto da narrativa alheia.
VOCÊ NÃO DEVE NADA A QUEM JÁ TE CONDENOU
Muita gente não quer saber da sua história. Quer apenas reafirmar a própria ilusão de controle. “Eu também bebo, mas sei parar.” “Você é que é fraco.” “Isso é falta de força de vontade.” — frases como essas não são ditas para te ouvir, mas para te invalidar.
E o mais perigoso: essas frases se alojam. Você começa a se perguntar se talvez seja mesmo inferior. Se talvez eles tenham razão. E aí, como num gesto de desespero, você começa a tentar se explicar.
Mas veja: explicar-se para quem já decidiu que você é o erro não é comunicação. É autoflagelo.
A superação começa quando você recusa esse jogo.
VOCÊ NÃO É UMA TESE A SER DEFENDIDA
A psicanálise nos ensina que o sujeito se forma a partir do desejo do Outro. Mas também nos alerta: quando esse Outro é cruel, narcísico, julgador, precisamos reconstruir o desejo fora da imagem que nos foi dada.
Superar, nesse contexto, é descolonizar seu eu das narrativas que te colocaram como menos. É sair da posição de “acusado tentando provar inocência” e assumir a posição de sujeito em processo, que não precisa mais se explicar, mas apenas existir.
A filosofia existencial propõe algo semelhante: não somos um ser pronto, mas uma construção constante. E cada vez que você tenta provar que é “bom o suficiente”, “forte o bastante” ou “controlado como os outros”, você paralisa seu processo. Você vira performance.
O real só emerge quando você larga a necessidade de convencer.
SILENCIAR NÃO É FUGIR: É SOBERANIA
Há um silêncio que é fuga. Mas há outro que é maturidade.
Silenciar diante de quem não escuta é um ato de soberania subjetiva. É quando você decide que a sua energia é mais valiosa do que a necessidade do outro de te reduzir.
Se explicar para quem não te entende pode ser uma forma disfarçada de ainda buscar validação. De dizer: “Me ame, mesmo assim”. Mas o amor real — o que você deve a si mesmo — não se compra com argumentos. Ele se firma com presença, com consistência de escolhas, com dignidade silenciosa.
Superar, aqui, é reconhecer o limite da escuta do outro — e se libertar da ilusão de que você precisa ultrapassá-lo para provar algo.
O QUE HÁ DEPOIS DA EXPLICAÇÃO?
A vida depois da explicação é um lugar mais quieto, mais limpo. Nele, você não precisa justificar o passado. Você apenas caminha.
Você entende que há dores que o outro nunca vai alcançar. E que está tudo bem.
Você não está vivo para ser entendido. Está vivo para viver.
E se alguém quiser caminhar ao seu lado, que venha com respeito. Que venha com escuta. Que venha sem a arrogância de quem se julga imune à queda. Porque todos, em alguma medida, tropeçam. A diferença está em quem transforma o tropeço em travessia — e quem transforma o erro do outro em espelho da própria vaidade.
NIETZSCHE, LACAN E A ÉTICA DE SEGUIR
Nietzsche nos lembrava que “o que não me mata, me fortalece” — mas a força que importa não é a força de parecer inabalável. É a força de permanecer sendo, mesmo quando tentam te apagar com palavras.
Lacan, por sua vez, dizia: “O inconsciente é estruturado como uma linguagem”. Mas quando essa linguagem é sempre explicativa, ela se desconecta do desejo. Falar por obrigação não é desejo. É prisão.
Você não precisa mais disso.
Se alguém te pergunta por que você parou de beber, você pode responder com um simples:
“Porque eu escolhi viver.”
Sem tese. Sem defesa. Sem submissão.
A TRAVESSIA É SUA
No final das contas, a superação não acontece quando os outros finalmente te entendem.
Ela acontece quando você para de querer ser entendido — e começa a habitar sua verdade com dignidade.
Você não é um caso a ser estudado. Você é uma história viva em processo de reescrita.
E não precisa mais justificar cada vírgula para plateias que aplaudem só a própria superioridade.
Superar é parar de se explicar.
É viver. Sem pedir licença.
Rafa Pessato
Especialista em Autoconhecimento e Comportamento