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NÃO É SÓ UM HÁBITO: o que o consumo de álcool diz sobre a nossa cultura?

Imagina um espelho. Agora, imagina que esse espelho é um copo. Um copo de vinho, de cerveja, de uísque. Quando você olha dentro dele, o que vê? Alegria? Alívio? Uma desculpa? Uma ferida?

A verdade é que o álcool não é só um líquido que a gente bebe. É um sinal. Um código cultural. Uma chave que abre portas sociais, máscara dores e, muitas vezes, esconde perguntas que a gente não quer (ou não sabe) fazer.

Bora conversar sobre isso?

O QUE O ÁLCOOL FAZ NO NOSSO CÉREBRO (E POR QUE ELE FUNCIONA TÃO BEM)

Vamos direto ao ponto: beber dá prazer. E isso não é uma metáfora, é bioquímica.

O álcool mexe em áreas do nosso cérebro que cuidam da recompensa, do relaxamento e da sensação de bem-estar. Ele aumenta a dopamina (o “neurotransmissor do prazer”), dá uma turbinada na serotonina (o “hormônio da felicidade”) e desacelera nosso sistema nervoso.

Ou seja: ele age exatamente onde a vida moderna mais pesa.

Num mundo ansioso, cansado e solitário, o álcool entra como um botão de “desliga”.

Mas… a pergunta que vale ouro: por que a gente precisa tanto desligar?

 

BEBER PRA SE SENTIR PARTE: O ÁLCOOL COMO PASSAPORTE SOCIAL

A real é que a maioria das pessoas não começa a beber porque tem um problema. A maioria começa porque todo mundo faz.

Beber é quase um ritual de entrada na vida adulta. Eu comecei a beber na infância, e o ritmo se intensificou na adolescência. Mas foi a partir dos meus 18 anos (que inclusive comemorei em uma choperia brincando de escravo de Jó com as taças) que tudo desandou ainda mais. E como ritual, não participar disso às vezes soa como: “ué, tá tudo bem com você?”. E quando a gente diz “tô de boa”, vem aquele clássico: “só uma, vai…”.

Na prática, o álcool virou uma senha de pertencimento.

A filósofa Simone Weil dizia que o ser humano tem fome de sentido. Assim, pode-se dizer que: tem fome de sentir que faz parte, fome de sentido de pertencimento. E o álcool, muitas vezes, parece um atalho pra isso.

Mas será que é mesmo?

 

QUANDO O PRAZER VIRA ANESTESIA

Beber no happy hour, tudo bem. Mas e quando vira toda hora?

Tem gente que bebe pra relaxar. Tem quem beba pra esquecer. Tem quem beba pra conseguir suportar. Ou bebe por conta e tudo isso. Nesses casos, o álcool não é mais sobre celebração. É sobre fuga.

O médico Gabor Maté, que entende muito de dependência, diz que a pergunta certa não é “por que você bebe?”, mas “por que você está com dor?”.

Dor emocional. Trauma. Falta de afeto. Um buraco que a gente tenta preencher com qualquer coisa — até com álcool.

E a sociedade, em vez de acolher, aplaude quem “aguenta firme”. Mesmo que seja à base de bebida.

 

O ÁLCOOL COMO SINTOMA DE UM MUNDO ESGOTADO

Pensa comigo: a gente vive num tempo em que tem que estar sempre bem, produtivo, otimista e de preferência magro e interessante no Instagram. Só que ninguém consegue ser tudo isso o tempo todo. É cansativo. E solitário.

Aí vem o álcool: barato, acessível e socialmente aceito. Uma espécie de “calmante de luxo”, que a gente toma sorrindo.

Mas por trás desse gole existe um recado: “eu não tô aguentando”.

O álcool vira um curativo que a cultura nos oferece, porque é mais fácil anestesiar do que encarar o vazio.

 

DIONÍSIO, NIETZSCHE E A EMBRIAGUEZ EXISTENCIAL

Lá na Grécia Antiga, já se falava em embriaguez. Dionísio, o deus do vinho, era também o deus do êxtase, da arte, da loucura. Nietzsche, o filósofo, dizia que a gente precisa de um pouco de caos pra criar coisas lindas.

Ou seja: o problema não é querer sentir mais intensamente a vida. O problema é quando a única saída é se entorpecer.

Existe uma embriaguez boa: a do amor, da música, do pôr do sol que te faz chorar sem saber por quê. E existe a embriaguez que entorpece, apaga, repete.

E aí vem a pergunta real: a gente tá bebendo pra viver mais… ou pra viver menos?

 

COMO SENTIR PRAZER DE VERDADE (SEM PRECISAR FUGIR)

Existe vida depois do copo. E ela não é sem graça, nem careta. É viva, cheia de texturas. Mas ela pede presença. E isso dá trabalho.

Prazer real é aquele que não cobra ressaca emocional depois.

É quando você se conecta com o corpo de verdade: dança, corre, respira, se emociona. É quando você ri até doer a barriga. Quando se ouve, se acolhe, se perdoa.

Tem quem encontre esse prazer na meditação. Outros, na natureza. Muitos no esporte. Outros, numa conversa sincera com alguém que não quer nada além de escutar.

O cérebro também se ilumina nesses momentos. Não é só o álcool que sabe dar prazer.

 

E SE RECUSAR O COPO FOSSE UM ATO REVOLUCIONÁRIO?

Num mundo que bebe pra não sentir, escolher a sobriedade pode ser um ato de coragem.

Não pra se isolar. Mas pra se aproximar de si. Pra olhar no espelho (ou no copo vazio) e dizer: “eu tô aqui”.

Não se trata de demonizar quem bebe. Mas de questionar por que a gente sente tanta necessidade de beber.

Talvez seja hora de perguntar:

“O que eu estou realmente procurando nesse copo?”

 

E, depois disso, ter coragem de ir procurar em outro lugar.


Rafa Pessato

Especialista em autoconhecimento e comportamento

rafapessato.eu