“A internação compulsória não é cura. É, no melhor dos casos, um ponto de parada. Mas o que se faz depois — isso sim pode salvar vidas.” (Gabor Maté)
Há perguntas que não queremos nem pronunciar em voz alta.
“Será que eu preciso internar meu filho?”
“E se meu companheiro estiver morrendo e não percebe?”
“Será que é minha culpa ele estar assim?”
Essa conversa não é fácil. E não deveria ser mesmo.
Porque internar alguém, sobretudo compulsoriamente, é uma das decisões mais duras, solitárias e, muitas vezes, carregadas de culpa.
Mas ignorar o problema nunca curou ninguém.
E, às vezes, a linha entre “respeitar o tempo do outro” e “ver alguém se destruir de braços cruzados” é mais fina do que gostaríamos.
Vamos conversar sobre isso?
O QUE É INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA E QUANDO ELA É INDICADA?
Internação compulsória é aquela feita sem o consentimento da pessoa, por ordem médica ou judicial, quando há risco iminente à vida (do paciente ou de terceiros), e a pessoa está sem condições de decidir por si mesma.
No caso do alcoolismo, ela pode ser indicada quando:
- a pessoa está em surto, delírio ou confusão mental grave (psicose alcoólica)
- existe risco de suicídio, agressão ou abandono completo de si
- todas as tentativas voluntárias falharam
- a deterioração física e mental é evidente e acelerada
Segundo a Lei nº 10.216/2001, que garante os direitos das pessoas com transtornos mentais no Brasil, a internação compulsória deve ser sempre a última alternativa, e acompanhada de laudo médico.
É uma ferramenta emergencial. Como um extintor de incêndio: não substitui uma reforma elétrica. Mas pode impedir que tudo vire cinzas.
A INTERNAÇÃO SALVA? PODE SALVAR. MAS SÓ ELA, NÃO.
É comum ouvir frases como:
“Vamos internar, ele vai sair novo.”
“Ela só precisa ficar uns dias isolada.”
Essas frases carregam uma ilusão perigosa: a de que o alcoolismo pode ser “consertado” como se fosse uma engrenagem quebrada.
Mas o alcoolismo não é uma falha de caráter, nem um capricho. É uma doença crônica, multifatorial, que atinge corpo, mente e relações.
“A internação pode conter, estabilizar, proteger. Mas a recuperação é um processo que se constrói em comunidade, com tempo, acolhimento e mudança sistêmica.” (Dra. Ana Cecília Marques)
“MAS SE ELE É O DOENTE, POR QUE EU DEVERIA MUDAR?”
Essa é outra pergunta muito comum — e dolorosa.
Imagine uma casa com mofo. O morador desenvolve alergia grave. Ele é levado ao hospital, tratado com corticoides, nebulizações e cuidado médico.
Mas, quando volta, volta para o mesmo quarto mofado.
Internar alguém que vive numa casa emocionalmente tóxica e cheia de gatilhos é como dar remédio para depois devolver ao veneno.
A bebida pode estar na mão de um.
Mas a dor geralmente está em todos.
O AMBIENTE FAMILIAR COMO PARTE DO TRATAMENTO (OU DA RECAÍDA)
Muitos familiares dizem:
“Eu não sou o doente. Por que não posso ter uma garrafa de vinho na minha casa?”
Porque a casa é o terreno onde a recaída se prepara — ou se evita.
Na recuperação do alcoolismo, o ambiente importa. E muito:
- Ter bebida disponível é um gatilho constante.
- Discussões, silêncios e cobranças também são combustíveis para recaída.
- O despreparo da família pode sabotar até o melhor dos tratamentos.
Isso não significa culpar os familiares. Significa incluí-los no processo. Quando o alcoolista está doente, a família também adoece. E quando ele busca a sobriedade, a família precisa buscar saúde relacional.
O TRIÂNGULO DO DRAMA DE KARPMAN: QUANDO A CASA É UM PALCO
O psicólogo Stephen Karpman, em 1968, descreveu o Triângulo do Drama, um modelo que mostra como nos enredamos em conflitos repetitivos assumindo três papéis:
🔺 Vítima – sente-se impotente, sofre, atrai proteção
🔺 Salvador – tenta resolver tudo, se anula, controla disfarçado de ajuda
🔺 Perseguidor – acusa, culpa, castiga
No alcoolismo, essa dança acontece o tempo todo:
- O dependente pode se colocar como vítima (“ninguém me entende”)
- O cônjuge vira o salvador (“se eu amar o suficiente, ele muda”)
- O pai se torna perseguidor (“você é um fracasso, está destruindo tudo”)
O problema? Esses papéis se alternam. E todos ficam presos no jogo.
“Enquanto o sistema familiar mantiver o jogo de vítima, salvador e perseguidor, o álcool continuará sendo o vilão útil para evitar o real enfrentamento.” (Melody Beattie)
COMO SAIR DESSE CICLO?
A primeira chave é assumir responsabilidade pelo seu papel na dinâmica.
Não é culpa — é participação.
Alguns passos reais:
- Corte os gatilhos ambientais – remova bebidas, evite festas com álcool, mude a rotina.
- Participe de grupos de apoio familiar – Al-Anon, Amor-Exigente, grupos sistêmicos.
- Procure ajuda terapêutica para você também.
- Não tente ser salvador nem juiz. Seja alguém presente, claro e afetuoso.
- Construa um plano pós-internação com o paciente e os profissionais.
A CULPA: O FANTASMA MAIS PESADO DA DECISÃO
“Será que eu fui longe demais ao internar meu filho?”
“E se ele me odiar?”
“E se ele nunca me perdoar?”
A culpa surge porque sentimos que invadimos a liberdade de alguém.
Mas o que é liberdade para quem está preso numa compulsão que coloca a própria vida em risco?
“A omissão pode parecer mais fácil. Mas às vezes, o verdadeiro amor impõe um limite.”
A decisão de internar deve ser baseada em fatos concretos e necessidade médica — e não em desespero ou raiva.
Mas, uma vez feita com responsabilidade, ela pode ser um ato de amor radical.
E DEPOIS DA ALTA?
Internar salva. Mas quem salva a recuperação é o cotidiano.
Quando a pessoa volta, é preciso:
- um lar novo, não apenas “o mesmo lar sem gritos”
- espaço para escuta e não cobrança
- rotina com sentido e propósito
- acompanhamento terapêutico e, se possível, grupos de mútua ajuda (AA, NA)
“A recaída começa no ambiente muito antes do primeiro gole.” (Dr. Dartiu Xavier)
INTERNAR PODE SER NECESSÁRIO. MAS NUNCA É SUFICIENTE.
O alcoolismo é uma doença que se infiltra nas relações, nos silêncios e nas rotinas.
Internar alguém pode ser uma medida extrema, emergencial — e sim, às vezes a única saída naquele momento.
Mas se a família não se trata, se a casa não muda, se a dor coletiva não é encarada, o ciclo se repete.
Porque o álcool é um personagem — mas o enredo é coletivo.
Rafa Pessato
Especialista em Autoconhecimento e Comportamento
Rafapessato.eu