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ENTRE A SOLIDÃO E A SOLITUDE, A DEPENDÊNCIA. Como o sentimento de vazio pode levar à dependência e como reverter isso.

“A alma humana tem sede de conexão, mas também de silêncio.” Clarissa Pinkola Estés

Há um espaço entre a solidão e a solitude que não cabe no dicionário. É nesse vão que floresce, muitas vezes, a dependência — não só a do álcool, das drogas em geral, dos comportamentos e mesmo do outro, mas aquela mais silenciosa: a dependência de fugir de si.

O que diferencia um estado do outro — solidão e solitude — não é apenas a presença ou ausência de alguém, mas o quanto essa ausência fere ou liberta. E quando fere demais, quando o silêncio se torna grito, muitas vezes surge a urgência de calá-lo a qualquer custo.

Esse artigo é uma travessia: do desespero à presença. Um olhar profundo sobre como a dependência pode nascer como tentativa de aliviar a dor da solidão, e por que o caminho de volta talvez precise passar pela coragem da solitude.

 

SOLIDÃO: QUANDO O VAZIO MACHUCA

A solidão, segundo a psicologia, não é o mesmo que estar sozinho — é sentir-se desconectado, incompreendido, invisível. A Universidade da Califórnia, em um estudo liderado por John Cacioppo (2008), demonstrou que a solidão crônica pode ser tão prejudicial quanto fumar 15 cigarros por dia. Ela impacta o sistema imunológico, aumenta o risco de doenças cardiovasculares e pode até reduzir a expectativa de vida.

Cacioppo defendia que a solidão é “um alarme biológico”, tal qual a dor física: um aviso de que estamos socialmente em risco. Assim como o corpo precisa de abrigo, a alma precisa de vínculo.

Mas o que acontece quando não conseguimos construir esse vínculo de forma saudável? Quando a dor do abandono — real ou simbólico — se torna insuportável? Frequentemente, buscamos alívio em vícios e compulsões, pois o álcool, a comida, o celular ou até o trabalho oferecem uma sensação momentânea de companhia.

 

SOLITUDE: A PRESENÇA CONSIGO

Solitude, por outro lado, é o estado de estar só e em paz. Um espaço fértil de reconexão com o eu profundo, com o silêncio criativo, com o corpo como templo e não prisão.

Carl Gustav Jung dizia que “a solidão não vem de estar sozinho, mas de não ser capaz de comunicar as coisas que são importantes para nós.” A solitude, então, seria essa escuta íntima e generosa que começa quando a comunicação externa silencia — e a interna floresce.

Neurocientificamente, períodos de solitude ativa (ou seja, de estar só por escolha, não por exclusão) têm efeitos positivos sobre a criatividade, regulação emocional e saúde mental. Um estudo publicado na Personality and Social Psychology Bulletin (2017) mostrou que pessoas que cultivam momentos de solitude desenvolvem maior autoconsciência e menor reatividade emocional.

 

A PONTE ENTRE ELAS: A DEPENDÊNCIA COMO GRITO POR PERTENCIMENTO

A dependência raramente é apenas química — ela é também emocional, existencial. Ela nasce quando o ser humano, incapaz de habitar a solitude e atormentado pela solidão, busca terceirizar o próprio alívio. O álcool, por exemplo, não é o problema: é a solução temporária de um problema mais fundo.

Segundo o psiquiatra Gabor Maté, autor de Vício: o reino dos fantasmas famintos, a dependência é nos sobre a substância e mais sobre o sofrimento não resolvido.

“A pergunta certa não é ‘por que o vício?’, mas sim ‘por que a dor?’”.

Essa dor, muitas vezes, é a solidão precoce — o abandono emocional na infância, a ausência de pertencimento, os traumas não validados. O cérebro, em busca de alívio, condiciona-se a respostas rápidas: dopamina, serotonina, anestesia.

A dependência, então, é a construção de uma ponte instável entre dois abismos: o do vazio e o do excesso. Não se trata de falta de força de vontade, mas de excesso de dor.

 

A INFÂNCIA COMO MATRIZ DA SOLIDÃO

A criança que não é vista, ouvida, validada, aprende a não confiar na presença. Torna-se adulta em vigília permanente — buscando em substâncias ou relações o colo que lhe faltou.

Estudos demonstram que experiências adversas na infância (ACEs – Adverse Childhood Experiences) aumentam significativamente a probabilidade de desenvolver dependências na vida adulta. Um relatório do CDC (Centers for Disease Control and Prevention, 2021) mostra que indivíduos com quatro ou mais ACEs têm cinco vezes mais risco de abuso de álcool.

A solidão que não foi nomeada na infância vira dependência silenciosa na vida adulta.

 

SOLITUDE: A PRÁTICA RADICAL DA RECONEXÃO

Transformar a solidão em solitude é um caminho terapêutico, espiritual e neurológico. Requer reeducar o corpo a estar em si — e isso assusta.

A dependência ensina a fugir do desconforto. A solitude ensina a sentar com ele.

Nesse processo, práticas como meditação, yoga, escrita terapêutica, arteterapia e caminhadas conscientes têm sido validadas cientificamente como auxiliares na regulação emocional e diminuição da compulsão.

Além disso, grupos de apoio funcionam não apenas por causa da abstinência, mas por restaurarem o pertencimento. Ali, a solidão se dissolve na escuta mútua.

 

ENTRE O DESAMPARO E A PRESENÇA: O PARADOXO DA CURA

A dependência se instala quando estar com os outros machuca, mas estar só também. A cura, paradoxalmente, passa pela coragem de ficar — em si, no corpo, na emoção, no momento.

Isso não se aprende de uma vez. Como diz a poetisa Nayirrah Waheed.

“E eu disse à minha mente: fique. E ela ficou. Por um momento.”

Esse momento já é revolução.

A sobriedade não é apenas a ausência da substância. É a presença de um novo eu. Um eu que aprendeu a não mais se abandonar. Que transforma a solidão em solitude, o desespero em ritual, o silêncio em casa.

É nesse ponto — entre a dor e a potência — que a verdadeira liberdade se revela.

 

 


 

Rafa Pessato

Especialista em Autoconhecimento e Comportamento

rafapessato.eu