Tem gente que bebe pra esquecer. Tem quem beba pra lembrar. Tem quem beba porque a vida tá dura demais. E tem quem beba porque desaprendeu a sentir.
Quando a gente larga o álcool, parece que o mundo tira a embalagem plástica. Tudo fica mais cru, mais áspero. A dor bate sem anestesia, a alegria também. É como se você tirasse um fone de ouvido depois de anos, e o som da vida voltasse: alto, irregular, sem filtro.
Sobriedade não é só parar de beber. É reaprender a viver com todos os sentidos despertos. É descobrir que dá pra se embriagar de outras coisas. De um céu bonito. De um verso que arrepia. De uma tarde besta, com chuva batendo no telhado e cheiro de café na casa.
É disso que trata esse texto: de como se embriagar de vida, em pequenas doses, sem cair — pelo contrário, pra finalmente se levantar.
A ESTÉTICA DA PRESENÇA
Uma das primeiras descobertas da sobriedade é o incômodo da presença. No começo, estar presente pode parecer um castigo. O tempo se arrasta, os pensamentos gritam, o corpo exige o alívio que antes vinha no gole. Mas, com o tempo, a presença deixa de ser uma cela e vira janela.
Estar presente é, talvez, o maior luxo da vida moderna. Em um mundo que te empurra pra frente o tempo inteiro, permanecer no agora é um ato de resistência. E mais: é um convite ao encantamento. Porque é só na presença que as pequenas belezas se revelam.
Você já reparou nas sombras das folhas numa parede branca? Já viu o jeito que um cachorro dorme no sol? Já ouviu o silêncio ruidoso da madrugada sem pressa de ir embora?
Essas coisas não vendem, não dão curtida, não geram buzz. Mas são como goles de algo raro. Embriagam com leveza.
Nietzsche dizia: “Torna-te quem tu és.” E quem somos quando estamos sóbrios, limpos, atentos? Somos menos barulhentos, mais sensíveis. Menos performáticos, mais verdadeiros. É nessa presença despida de artifícios que a gente reencontra a dignidade de estar vivo.
O PRAZER DA SIMPLICIDADE
Você se lembra de quando uma coisa boba te fazia feliz? Tipo andar descalço na grama, enfiar a mão no saco de arroz, olhar o céu por tempo demais.
Pois é. A gente desaprende essas coisas. A vida adulta, o consumo, os vícios… tudo isso ensina que prazer tem que vir embalado, caro e com efeito imediato.
Mas a sobriedade é uma chance de voltar a gostar do que não tem propaganda. E isso é uma revolução silenciosa.
Tem uma beleza honesta no que é simples. A comida feita em casa. O banho demorado sem pressa. Um bilhete deixado na mesa. Um livro lido devagar.
Essas pequenas coisas — quase invisíveis — têm uma força gentil. Elas não gritam, mas te tocam. E, se você deixa, elas te curam.
Clarice Lispector escreveu: “Tenho a lucidez perigosa de quem vê demais e por isso mesmo não enxerga nada.”
Mas na simplicidade, a lucidez tem um peso mais sutil. Ela vira leveza. Você enxerga melhor porque não está mais fugindo. Está, enfim, habitando.
A EMBRIAGUEZ NÃO QUÍMICA: O SUBLIME, O INSTANTE, A ARTE
Quando a gente para de beber, costuma surgir um medo: e agora, como sentir o mesmo?
A resposta é: você não vai sentir o mesmo. Vai sentir diferente — e, muitas vezes, mais intensamente.
Existe uma embriaguez que não passa pelo fígado. Ela começa nos olhos, invade o peito, e explode sem destruir. É a embriaguez do sublime.
Sabe aquela música que arrepia? Aquela dança que te tira do chão? Um quadro que te faz chorar sem saber por quê?
A arte, o instante, a beleza inesperada — tudo isso pode te deixar bêbado de encantamento. Sem perder a dignidade, sem acordar com ressaca moral.
O filósofo Eckhart Tolle fala sobre o poder do agora. E não é papo de autoajuda, não. É sobre abrir espaço dentro da cabeça pra que o mundo entre.
Quando você está inteiro num instante, até o trivial ganha brilho. O tempo para, e algo maior se revela. É quase místico — e totalmente real.
A LEVEZA COMO NOVA FORMA DE INTENSIDADE
Durante anos, talvez você tenha associado intensidade a exagero. A festa, o porre, o riso alto demais, a lágrima escorrendo, a adrenalina correndo solta.
Mas leveza também pode ser intensa. Intensa de outro jeito. Intensa como um afeto que não precisa gritar pra ser sentido. Como um silêncio que diz mais que mil palavras.
Na sobriedade, você começa a entender que leveza não é futilidade. É maturidade emocional. É poder sentir tudo sem ser engolido. É não se anestesiar, mas também não se afogar.
Leveza é quando você consegue estar no meio do caos e ainda assim manter um canto interno em paz.
É quando você percebe que não precisa provar nada pra ninguém. Nem pra si mesmo.
E essa leveza, longe de te distanciar da vida, te aproxima. Porque você para de correr, de fingir, de competir. E começa a simplesmente estar.
PEQUENAS DOSES DE BELEZA: UM RECEITUÁRIO POSSÍVEL
Abaixo, um receituário informal pra se embriagar de vida em pequenas doses. Pode tomar sem medo. Não dá ressaca. E, se causar dependência, que seja da boa:
- Ouça uma música como se fosse a primeira vez. De olhos fechados, sem fazer mais nada. Só ouça.
- Leia poesia em voz alta. Mesmo que seja só pra você.
- Caminhe sem rumo. Deixe o corpo escolher o caminho.
- Observe o céu por cinco minutos. Deixe-o mudar você.
- Converse com alguém sem celular por perto. Escute de verdade.
- Faça algo com as mãos. Cozinhar, desenhar, escrever à mão.
- Sinta a água no banho. Não lave só o corpo. Lave a pressa.
- Abrace alguém demoradamente. Até as respirações se encontrarem.
- Desligue tudo. Fique em silêncio. Apenas esteja.
Essas pequenas práticas são portais. Elas não substituem o álcool. Vão além. Te mostram que existe algo mais — algo que estava lá o tempo todo, mas que você não via.
A ARTE DE SE PERDER (E SE ENCONTRAR)
Viver sóbrio é como recomeçar uma pintura que foi borrada. No começo, dá medo do branco da tela. Mas aos poucos, você percebe que pode escolher as cores.
A embriaguez de vida não é imediata. Ela exige presença, paciência e poesia. Mas quando vem, é avassaladora.
Não derruba. Sustenta.
A gente passa tanto tempo tentando se proteger da vida que esquece que ela é o único lugar onde as coisas de verdade acontecem.
A dor, sim. Mas também o amor, o afeto, a beleza.
Então, permita-se perder-se num pôr do sol, num abraço sincero, numa música que toca fundo.
Permita-se embriagar — não pra fugir da vida, mas pra se fundir com ela.
Porque viver sóbrio não é viver menos. É viver mais. É viver tudo.
E isso, amigo, é a maior êxtase que existe.
Rafa Pessato
Especialista em Autoconhecimento e Comportamento