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DO PRATO AO COPO: como o álcool virou escape após a cirurgia bariátrica

Você emagrece. O mundo aplaude. O espelho sorri. A roupa entra.

Mas, por dentro, algo escapa. Um ruído, um vazio, uma ansiedade sem nome.

A comida — antes válvula de escape, consolo ou anestesia — agora não cabe mais.

Então o alívio começa a vir em goles. Um copo aqui, outro ali.

Afinal, você venceu “o grande vilão”, não venceu?

Mas… e se eu te disser que o álcool, para quem fez cirurgia bariátrica, não é apenas um risco? É uma bomba-relógio — silenciosa, sorridente — que pode explodir direto no seu coração.

Este artigo não é para assustar. É para acordar.

Porque o que mata, neste caso, não é só o álcool.

É o silêncio.

É a ilusão de que estar magro é estar bem.

É a ferida emocional que a cirurgia não alcançou.

O ESTÔMAGO REDUZIDO. O VAZIO AMPLIADO.

A cirurgia bariátrica é um divisor de águas. E como todo divisor, separa:

Antes da operação, a comida preenchia o buraco da alma.

Depois da operação, o buraco segue lá. Só muda de forma.

Estudos da Cleveland Clinic mostram que entre 7% e 30% dos pacientes desenvolvem uso problemático de álcool após a cirurgia — mesmo que nunca tenham bebido antes.

Isso tem nome: transferência de dependência.

O impulso por alívio emocional permanece. Só que a comida já não cabe. E o álcool… ah, ele entra fácil.

Entra rápido. E age ainda mais rápido.

O CORPO MUDA. A NECESSIDADE DE ANESTESIA, NÃO.

A mente espera um prêmio pelo emagrecimento. Espera que a dor suma junto com os quilos.

Mas quando a comida vai embora, o sofrimento emocional continua lá — muitas vezes, até mais exposto.

A bebida surge como um “agrado”, um “mimo”, um “merecimento”.

Só que o corpo, agora diferente, processa o álcool de outra forma:

🔸 Segundo a American Society for Metabolic and Bariatric Surgery, após a cirurgia, o álcool é absorvido diretamente pelo intestino delgado, atingindo o sangue em até 5 minutos.

🔸 Uma taça de vinho equivale ao efeito de três.

🔸 O pico de álcool no sangue dobra.

🔸 A degradação pelo fígado demora mais.

🔸 O efeito psicoativo é mais intenso e mais duradouro.

Ou seja: o álcool entra diferente. Mas destrói igual. Ou mais.

DA COMIDA À BEBIDA: A MUDANÇA DE VÍCIO É REAL

Antes, você comia para acalmar. Agora, você bebe para funcionar.

Só que há uma diferença perigosa: comer demais não altera seu estado de consciência. Beber demais, sim.

E isso muda tudo.

Bebida:

  • Dificulta o discernimento.
  • Facilita o autoengano.
  • Aumenta comportamentos impulsivos.
  • Eleva os riscos de acidentes, violências, internações, overdose.

A pessoa se perde — devagar e calada.

A cirurgia que era para salvar a vida pode acabar encobrindo um novo processo de autossabotagem.

E O CORAÇÃO? POR QUE ELE É TÃO ATINGIDO?

A resposta é multifatorial. E alarmante.

A bariátrica, por si só, já impõe risco cardiovascular:

🔹 Déficits nutricionais severos — principalmente de tiamina (vitamina B1), magnésio, potássio e ferro — enfraquecem o músculo cardíaco.

🔹 A má absorção de proteínas compromete a integridade dos tecidos.

🔹 A queda de volume corporal exige readequação hemodinâmica.

Agora some isso ao álcool, que:

🔸 Aumenta a pressão arterial e o risco de arritmias

🔸 Acelera a frequência cardíaca

🔸 Eleva os níveis de triglicerídeos

🔸 Inflama o endotélio (a camada interna dos vasos)

🔸 Piora quadros de anemia e hipovitaminoses já existentes

📌 De acordo com a American Heart Association, o álcool em excesso é responsável por 5 a 10% dos casos de morte súbita cardíaca — e esse risco aumenta significativamente em pessoas bariatricadas.

A ILUSÃO DO CORPO “SAUDÁVEL”

Por fora: peso ideal, sorriso largo, elogios na rede social.

Por dentro: o fígado sobrecarregado, o coração desritmado, o cérebro em estado de alerta constante.

Ninguém vê o vinho diário.

Ninguém nota o uísque que substituiu a janta.

Ninguém comenta os lapsos de memória, os tremores, a ansiedade que voltou a bater.

Mas o corpo sente.

E muitas mortes súbitas pós-bariátrica — consideradas “infartos do nada” — estão ligadas ao uso crescente (e silencioso) do álcool.

A CIRURGIA NÃO CURA A ORIGEM DA DOR

A cirurgia mexe com o corpo, mas não com a história.

Se a comida era uma anestesia para traumas, abandonos, rejeições, carências… a dor continua ali.

E o álcool assume o papel de anestesiar — só que com efeitos mais devastadores.

👉 Ele tira a clareza.

👉 Diminui a capacidade de pedir ajuda.

👉 Faz a pessoa achar que “está tudo sob controle”.

Mas não está.

O QUE FAZER AGORA?

Este texto não é uma condenação.

É um lembrete de que a transformação verdadeira vai além da balança.

1. Pare de se culpar. Comece a se cuidar.

Você não falhou. Você está em processo. E merece suporte.

2. Busque acompanhamento especializado.

Procure profissionais com experiência em compulsão e dependência pós-bariátrica. Há grupos específicos para isso.

3. Faça exames cardíacos, mesmo sem sintomas.

Ecocardiograma, eletrocardiograma, exames de sangue. Prevenir é amar o próprio corpo.

4. Participe de grupos de apoio.

Alcoólicos Anônimos, grupos de cirurgiados, rodas de escuta. Falar transforma.

5. Reencontre prazeres mais saudáveis.

Música, arte, espiritualidade, escrita, terapia. A presença pode substituir a anestesia.

RESSIGNIFICAR, EM VEZ DE ESCONDER

Você não está sozinho.

O que você precisa agora não é mais emagrecer — é voltar a se escutar com honestidade.

Talvez o buraco no estômago tenha sido fechado.

Mas o emocional ainda precisa de cuidado, de coragem, de verdade. Não se anestesie de novo. Desta vez, caminhe com lucidez.

Com apoio. Com presença. Porque seu coração está batendo por você.

E ele precisa de você inteiro(a).

Se esse texto tocou você ou alguém que você ama, compartilhe. Falar sobre isso ainda é tabu. Mas o silêncio, neste caso, é mais perigoso que o álcool. Vamos mudar isso. Uma conversa de cada vez.

Rafa Pessato

Especialista em autoconhecimento e comportamento

rafapessato.eu

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