Imagine duas chamas. Uma é intensa, azulada, crepita alto e queima com força. A outra é mais suave, quase invisível, mas constante — aquece sem alarde. O vício, especialmente o alcoolismo, costuma se agarrar à primeira: o fogo rápido do prazer. Já a recuperação, a verdadeira transformação, floresce na segunda: o calor persistente da gratificação.
Neste artigo, exploro a diferença essencial entre prazer e gratificação — e como esse entendimento pode mudar radicalmente a relação com o álcool, a vida e consigo mesmo. Porque, como bem lembra Gustavo Arns, fundador do Congresso Internacional de Felicidade:
“Gratificação, diferentemente do prazer, é um estado mais profundo e amplo de satisfação.”
Mas o que isso quer dizer, na prática? E por que essa distinção é fundamental para quem busca sair do ciclo do alcoolismo?
PRAZER: O ESTALO QUE VICIA
Prazer é simples, direto e sedutor. Ele acontece quando há estímulo nos receptores sensoriais: o sabor do primeiro gole gelado, o cheiro do vinho, o calor imediato que sobe no corpo. Está profundamente ligado ao sistema de recompensa do cérebro, especialmente à liberação de dopamina no núcleo accumbens — uma área crítica que regula o comportamento de busca por recompensas (Volkow et al., 2011).
Esse circuito é ancestral e poderoso: garantiu a sobrevivência da nossa espécie nos tempos das cavernas. Comer um alimento calórico? Dopamina. Sexo? Dopamina. Descanso depois da caça? Dopamina. Tudo o que aumentava as chances de sobrevivência era “premiado” quimicamente com prazer.
Mas no mundo moderno, essa arquitetura neural começou a ser sequestrada. Substâncias como o álcool hiperestimulam esse sistema, causando picos de dopamina muito acima do natural — o que, com o tempo, leva à chamada habituação: quanto mais se busca, menos se sente. O cérebro adapta-se, e a euforia inicial desaparece, restando apenas a busca vazia, o impulso automático, o buraco.
Esse é o ponto de ruptura: o que começou como prazer vira compulsão.
GRATIFICAÇÃO: O CAMINHO QUE CONSTRÓI
Gratificação, ao contrário, não é um estalo — é uma construção. Ela não se dá num gole ou num estalo químico, mas na realização de algo significativo. Segundo Martin Seligman, pai da Psicologia Positiva, gratificação é o que nos conecta com nossas forças de caráter, com o que temos de mais autêntico e duradouro.
Ela ocorre quando estamos envolvidos em atividades que nos absorvem completamente — aquilo que Mihaly Csikszentmihalyi chamou de estado de flow. Um pintor diante da tela, um jardineiro em meio à poda, um professor dando aula com brilho nos olhos. Não é preciso sentir euforia; às vezes, nem há uma emoção intensa, mas há sentido, presença e envolvimento. E isso nutre.
PRAZER É PASSIVO. GRATIFICAÇÃO É ATIVA.
Aqui está uma chave poderosa: o prazer geralmente nos acontece. A gratificação, nós criamos.
Essa diferença muda tudo para quem busca sair do vício.
O álcool oferece uma experiência de prazer rápida e disponível. Basta abrir uma garrafa. Não é preciso esforço, nem reflexão, nem presença. A sensação vem, mesmo que fugaz.
Já a gratificação exige envolvimento: escolher um projeto, um propósito, uma atividade que alinhe com quem se é. É mais difícil no início, mas infinitamente mais nutritivo a longo prazo.
O PAPEL DA CONSCIÊNCIA: ENTRE SENTIR E ESCOLHER
O prazer é sensorial, emocional, passageiro — e muitas vezes automático. Não exige raciocínio. Já a gratificação depende de uma escolha consciente, de um alinhamento entre valores, ações e propósito. Isso tem implicações diretas na recuperação do alcoolismo.
Muitas pessoas recaem porque confundem “sentir bem” com “estar bem”. Mas nem todo bem-estar vem de sensações agradáveis. Às vezes, estar bem significa conseguir lidar com o desconforto sem precisar anestesiar.
Daniel Kahneman, Nobel de Economia e estudioso do comportamento humano, distingue duas formas de viver: a vida de prazer (experiência imediata) e a vida de sentido (memória e narrativa). A gratificação pertence à segunda: ela constrói uma história coerente sobre quem somos. O prazer, sozinho, não sustenta essa história.
POR QUE ISSO IMPORTA PARA QUEM QUER PARAR DE BEBER?
Porque entender a diferença entre prazer e gratificação ajuda a trocar de combustível.
O álcool oferece prazer. Rápido, fácil, acessível — mas caro demais. Ele sequestra a dopamina, acostuma o cérebro a doses cada vez maiores e desliga a capacidade de buscar prazer de forma saudável.
Já a gratificação reconecta o cérebro com o que foi sendo silenciado pelo vício: a curiosidade, a criatividade, o senso de contribuição, a paixão por aprender ou ensinar, o gosto pelas pequenas coisas. Isso realinha o sistema de recompensa e reduz a necessidade de buscar alívio externo.
Um estudo publicado no Journal of Substance Abuse Treatment (2016) mostrou que práticas que promovem o flow — como arte, meditação, jardinagem ou trabalho voluntário — aumentam significativamente as taxas de manutenção da sobriedade. O motivo? Elas geram gratificação autêntica.
SOBRIEDADE É A VOLTA PARA O QUE SATISFAZ DE VERDADE
Superar o alcoolismo não é abrir mão do prazer — é aprender a não depender dele como única via de satisfação.
É trocar o imediatismo do “agora me sinto bem” por uma construção mais estável de bem-estar.
É deixar de buscar alívio e passar a buscar reconexão.
É entender que prazer sem sentido é como fogo de palha: bonito, mas passageiro.
E que gratificação é como um fogo que aquece o coração — discreto, mas essencial.
COMO CULTIVAR A GRATIFICAÇÃO NA PRÁTICA?
Reconheça suas forças de caráter
Use ferramentas como o teste VIA (gratuito e validado cientificamente) para descobrir suas principais forças — como criatividade, curiosidade, amor ao aprendizado, espiritualidade, liderança, entre outras.
Crie atividades que envolvam essas forças
Se sua força é curiosidade, leia sobre temas novos. Se é empatia, envolva-se em projetos com outras pessoas. Se é criatividade, crie — mesmo que ninguém veja.
Permita-se viver o desconforto sem correr para anestesiar
A gratificação nasce de escolhas que exigem presença. Ela pode não vir no primeiro momento, mas é muito mais duradoura que o alívio instantâneo.
Busque experiências de flow
Perceba em quais momentos o tempo passa diferente, você se sente presente e envolvido. Isso é flow. Nutra esses momentos.
Redefina o que é “prazeroso”
À medida que a gratificação cresce, o prazer também muda. Coisas antes “sem graça” começam a ganhar brilho. O café pela manhã, o silêncio, um livro, uma conversa honesta. É como se o sistema de recompensa passasse por uma reeducação.
DE VOLTA PARA SI
O álcool costuma ser uma tentativa de voltar para casa — mas pega o atalho errado. Ele oferece prazer, mas rouba gratificação. Alivia por um instante, mas atrasa a chegada àquilo que realmente satisfaz.
Entender a diferença entre essas duas dimensões é dar um passo gigante rumo à autonomia emocional, à reconexão interna e à liberdade real.
A verdadeira sobriedade não é ausência de prazer — é presença de sentido.
É acender o fogo certo: o que não cega, mas aquece.
O que não queima, mas ilumina.
Rafa Pessato
Especialista em Autoconhecimento e Comportamento