Começa quase sempre assim, como uma frase jogada no ar, meio rindo, meio séria:
“Se não tiver bebida, eu nem vou.”
Não é apenas uma preferência. É um sintoma cultural. Um acordo silencioso. Um código social que se consolidou sem pedir licença. Comemorar virou bebemorar. Beber tornou-se sinônimo de celebrar. E o álcool, protagonista absoluto das festas — do nascimento ao luto.
Aniversários, casamentos, promoções, feriados. Até velórios.
Ainda lembro, quando criança, de participar de um velório na casa do falecido. O caixão na sala. As flores. O choro contido. E, na cozinha, adultos rindo alto, copos cheios, alguém dizendo que era preciso “beber o defunto”. As crianças corriam em volta do caixão. A morte tentava ser anestesiada. A vida, disfarçada.
Essa cena não é exceção. É herança cultural.
E também o retrato de uma sociedade que desaprendeu a sentir sem anestesia.
Este texto é sobre isso.
Sobre como o álcool ocupou o lugar do encontro, do rito e da celebração — e sobre o preço psíquico, social e existencial dessa substituição.
Especialmente para quem vive a dependência, a compulsão, os gatilhos emocionais, a recaída e o difícil caminho da sobriedade.
QUANDO A FESTA PASSOU A PRECISAR DE ÁLCOOL
O álcool sempre esteve presente na história da humanidade, associado a rituais, colheitas e encontros coletivos. Mas havia um detalhe essencial: o álcool não era o eixo em torno do qual tudo girava.
Segundo registros históricos e estudos arqueológicos, as bebidas fermentadas da Antiguidade tinham teor alcoólico muito inferior ao atual. Vinhos consumidos no Mediterrâneo antigo eram frequentemente diluídos em água — prática comum entre gregos e romanos. Beber vinho puro era visto como excesso, falta de medida.
O que mudou não foi apenas a bebida.
Foi o sentido.
Hoje, o álcool deixou de ser coadjuvante simbólico e virou protagonista químico. Ele não acompanha a festa. Ele define a festa. Sem álcool, para muitos, não há clima, não há coragem, não há alegria possível.
O ÁLCOOL COMO ATALHO EMOCIONAL
Do ponto de vista do comportamento, isso não acontece por acaso. O álcool atua como depressor do sistema nervoso central, reduz inibições, diminui a ansiedade social e cria uma sensação temporária de euforia e pertencimento.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), agência da ONU responsável por monitorar a saúde global, o consumo de álcool está associado a mais de 3 milhões de mortes por ano no mundo, o que representa cerca de 5% de todas as mortes globais. A OMS reconhece o álcool como fator causal de mais de 200 doenças e condições de saúde, incluindo transtornos mentais e comportamentais, doenças hepáticas, cardiovasculares e diversos tipos de câncer.
Em relatório oficial, a organização afirma que não existe nível seguro de consumo de álcool quando o critério é a preservação da saúde. O álcool atua diretamente nos sistemas de recompensa do cérebro, aumentando o risco de dependência, recaída e agravamento de quadros de ansiedade e depressão — sobretudo em contextos sociais que normalizam e incentivam o consumo.
GATILHOS EMOCIONAIS: QUANDO A FESTA NÃO É SÓ UMA FESTA
Para o alcoolista — ou para quem está em processo de sobriedade — a festa raramente é apenas uma festa. Ela carrega memória, associação, automatismo.
A ciência descreve os gatilhos emocionais como estímulos internos ou externos capazes de reativar o desejo intenso pelo uso da substância. Ambientes festivos, músicas, cheiros, datas comemorativas, copos específicos. Tudo isso pode religar circuitos cerebrais ligados ao consumo.
É por isso que frases aparentemente inofensivas — “é só hoje”, “é uma ocasião especial” — têm tanto poder destrutivo. Elas não dialogam com a razão. Elas falam com a memória emocional.
Recaída não é falta de caráter.
É previsibilidade neuropsíquica quando não há sustentação simbólica suficiente para dizer não.
QUANDO BEBER VIROU SINÔNIMO DE FESTEJAR
Ao longo do século XX, especialmente após a industrialização das bebidas alcoólicas, o álcool foi reposicionado culturalmente. De item eventual, passou ao centro da mesa — literal e simbolicamente.
A publicidade teve papel decisivo. Durante décadas, beber foi associado à sucesso, status, virilidade, liberdade, sofisticação e pertencimento. Não se vendia apenas bebida, mas identidade.
O álcool virou linguagem social.
Quem bebe o quê, quando e como comunica posição.
Mas a adicção não reconhece classe social.
O fígado não distingue renda.
O corpo não metaboliza status.
O risco não diminui com sobrenome.
Dados do National Institute on Alcohol Abuse and Alcoholism (NIAAA) — Instituto Nacional sobre Abuso de Álcool e Alcoolismo, ligado ao governo dos Estados Unidos — mostram que os transtornos relacionados ao uso de álcool atravessam todas as classes sociais. O que muda é o disfarce. Em algumas camadas, o alcoolismo aparece como descontrole. Em outras, como hábito refinado.
“MAS JESUS TRANSFORMOU ÁGUA EM VINHO…”
O argumento surge com frequência. O primeiro milagre de Cristo é usado como justificativa cultural e moral para o consumo de álcool.
O que quase nunca se diz é que o vinho daquele período histórico não é o vinho de hoje.
Estudos históricos indicam que os vinhos do século I eram fermentados naturalmente, sem controle industrial, diluídos em água e com teor alcoólico estimado entre 2% e 4%.
Para comparação:
- Cervejas atuais: 4% a 6%
- Vinhos modernos: 11% a 14%, alguns acima de 15%
- Destilados: 38% a 40%
Não se trata apenas de beber vinho. Trata-se de concentração, frequência e contexto. A analogia histórica, quando usada sem critério, distorce mais do que esclarece. Esse tema é polêmico, e renderia um artigo inteiro só para abordá-lo.
QUANDO A SOBRIEDADE VIRA DESVIO
Nesse cenário, escolher não beber passa a ser visto como estranho, suspeito, quase ofensivo. Como se a sobriedade quebrasse um pacto invisível.
Quem não bebe precisa se explicar.
Quem bebe demais, não.
A pessoa em sobriedade vira o espelho que incomoda. Ela lembra que a festa poderia existir sem anestesia. E isso desorganiza.
Surge então a pergunta insistente:
“Mas você não bebe nada?”
Ela raramente vem por curiosidade. Vem como defesa. Um pedido silencioso para que tudo continue igual.
Não é curiosidade.
É defesa.
O MERCADO SE MOVE, A CULTURA RESISTE
Segundo a IWSR Drinks Market Analysis — empresa internacional de análise do mercado global de bebidas — o segmento de bebidas sem álcool e com baixo teor alcoólico cresce de forma consistente no mundo.
O estudo aponta que consumidores buscam alternativas por motivos ligados à saúde mental, clareza cognitiva, desempenho físico e bem-estar emocional. Não apenas pessoas em recuperação, mas um público mais amplo que começa a questionar o papel central do álcool.
O mercado percebeu algo que a cultura ainda evita admitir: a festa não precisa acabar quando o álcool sai de cena.
COMO DEVOLVER O SENTIDO À CELEBRAÇÃO
Não se muda cultura com proibição nem com moralismo. Mudanças reais acontecem quando novas referências surgem.
Descentralizar o álcool.
Normalizar a escolha de não beber.
Ampliar o repertório social.
Questionar o automático.
Separar festa de anestesia.
Talvez o maior desafio seja aprender a estar presente sem suporte químico. Celebrar acordado. Sentir inteiro. Rir sem esquecer depois.
Sobriedade não é ausência de prazer.
É presença inteira.
Talvez seja hora de devolver ao verbo comemorar o que ele perdeu pelo caminho: consciência, vínculo e sentido.
Rafa Pessato
Embriague-se de si!
rafapessato.eu











