Parar de beber é um marco — mas não um destino. Para muitos, é o ato inaugural de uma jornada muito mais dolorosa e reveladora: a reconstrução de si mesmo. Após o último gole, o que resta é silêncio. E, no silêncio, surgem vozes antigas: medos reprimidos, traumas esquecidos, papéis sociais performados com tanta maestria que se tornaram quase indistinguíveis do “eu”. O que se descobre, então, é que a bebida não era só um vício — era uma armadura. E tirar a armadura revela não apenas a ferida, mas também a falsa identidade que foi moldada ao redor dela.
O EU-FORJADO NA DOR
Gabor Maté, médico e especialista em trauma e dependência, afirma: “Não pergunte por que o vício. Pergunte: por que a dor?” (Vício. O reino dos fantasmas famintos). O vício, segundo ele, é uma tentativa adaptativa de lidar com a dor emocional não resolvida. A bebida entra como alívio temporário, mas o que permanece é um eu adaptado à dor — um “eu-forjado”.
Esse eu não é construído em liberdade, mas na defesa. Ele nasce para agradar, se proteger, pertencer ou se esconder. Não é incomum que dependentes em recuperação relatem a sensação de não saber quem são sem o álcool — porque, de fato, o “eu” que conheciam estava indissociavelmente ligado à necessidade de anestesia. A dor funda a identidade.
O DESESPERO DE NÃO SER QUEM SE É
O filósofo Søren Kierkegaard descreve a angústia existencial como a condição de estar desconectado de si mesmo. Para ele, o pior tipo de desespero não é saber que se está perdido, mas crer que se é alguém que, de fato, não se é.
“O desespero é o não querer ser quem se é.” (Kierkegaard, O Desespero Humano)
No alcoolismo, muitas vezes vive-se exatamente essa cisão: um eu performático, que vive para manter aparências, lidar com a vida ou evitar a dor. Mas que, no fundo, é uma construção defensiva, não uma expressão autêntica. Romper com o álcool é também romper com esse eu. E isso, inevitavelmente, exige um luto.
O LUTO DE SI MESMO
Não se fala o suficiente sobre o luto que acompanha a recuperação. Luto por uma identidade. Por um modo de viver, por um estilo de ser no mundo, mesmo que disfuncional. Luto pelo personagem que se encarnou durante anos para sobreviver.
O existencialismo aponta que toda mudança identitária profunda exige uma travessia: uma zona de indiferença, de vazio, de não saber. Viktor Frankl, psiquiatra austríaco sobrevivente dos campos de concentração, dizia que o sofrimento só encontra sentido quando se atravessa a dor em direção a um propósito mais alto (Em busca de sentido).
Esse “entre-lugar” da recuperação é perigoso — mas também fértil. É o momento onde se pode, enfim, começar a escutar as vozes internas abafadas pelo álcool. E aqui entra um conceito central para entender esse processo: a identidade narrativa.
IDENTIDADE NARRATIVA: O QUE EU ME CONTO SOBRE QUEM EU SOU?
Dan P. McAdams sustenta que a identidade humana é construída como uma história — com protagonistas, tramas, traumas, vilões e redenções. O problema é que, no alcoolismo, essa história frequentemente se cristaliza em narrativas de fracasso, vergonha e autopunição.
Romper com a bebida não basta. É preciso reescrever a narrativa.
Em um estudo publicado na Personality and Social Psychology Review (McAdams, 2001), pessoas que conseguiam atribuir sentido redentor aos seus traumas e transformar suas narrativas em jornadas de crescimento apresentavam maiores níveis de bem-estar mental.
A reconstrução identitária, portanto, não é apenas cognitiva, mas simbólica. Envolve dar um novo significado à própria história — e isso exige honestidade, coragem e tempo.
O CÉREBRO TAMBÉM MUDA: A NEUROPLASTICIDADE COMO ALIADA
A boa notícia é que o cérebro muda com a história que se conta. A neurociência tem demonstrado que, mesmo após décadas de dependência, o cérebro possui capacidade de reorganização — a chamada neuroplasticidade.
Segundo artigo da Nature Reviews Neuroscience (Kolb & Gibb, 2014), experiências emocionais profundas e novas formas de pensar podem literalmente moldar o cérebro, criando novos caminhos neurais. A sobriedade abre espaço para essa reconfiguração — mas ela precisa ser cultivada com práticas intencionais: psicoterapia, meditação, escrita, arte, novos vínculos.
Se a dor moldou o cérebro de uma forma, o amor, a verdade e o autoconhecimento podem moldá-lo de outra.
MÁSCARAS SOCIAIS: O EU FUNCIONAL E O EU AUTÊNTICO
A sociedade, muitas vezes, aplaude o retorno do “funcional”. A pessoa que “parou de beber e voltou a trabalhar”, que “voltou ao normal”. Mas o normal, muitas vezes, é o mesmo ambiente, os mesmos papéis, os mesmos silêncios que adoeceram aquele sujeito.
Não é raro que pessoas em recuperação sofram uma recaída justamente por retornarem cedo demais ao “eu-funcional”, negligenciando o “eu-autêntico”. A autenticidade, ao contrário da performance, é incômoda: ela exige vulnerabilidade, ruptura com expectativas, enfrentamento de culpas e vergonha.
Como afirma Brené Brown:
“A autenticidade é uma prática diária de deixar de lado quem achamos que deveríamos ser e abraçar quem realmente somos.”
O problema é que, para muitos alcoolistas, esse “quem somos” ainda está por ser descoberto.
RECONSTRUIR NÃO É VOLTAR AO QUE ERA — É NASCER DE NOVO
Há um mito perigoso na recuperação: o de “voltar a ser quem eu era antes de beber”. Mas quem se era antes da bebida também estava ferido — por isso a bebida entrou de maneira excessiva.
A verdadeira reconstrução começa quando se abandona a ideia de retorno e se aceita a possibilidade de renascimento. Não se trata de restaurar, mas de recriar. E esse é um processo profundamente individual, muitas vezes solitário, mas também cheio de sentido.
Em termos existenciais, isso é liberdade. Mas como já dizia Sartre: “Estamos condenados à liberdade.” Porque ser livre é também ser responsável por si. Sem o álcool, não há mais desculpas — só decisões. E isso assusta mais do que se admite.
UM EU QUE NÃO PRECISA MAIS FUGIR
Parar de beber é só o começo — o verdadeiro trabalho começa quando se está sóbrio. É quando se olha no espelho e se pergunta: quem sou eu sem o álcool, sem a dor, sem as máscaras?
A resposta não vem de imediato. Ela se constrói com tempo, com quedas, com palavras ditas e desditas, com silêncios. Mas se há algo que a jornada da sobriedade ensina é que, por mais assustador que seja ser autêntico, é infinitamente mais libertador do que viver na prisão dourada da performance.
É nesse ponto que Kierkegaard, Maté, McAdams e a neurociência se encontram: todos apontam que viver como quem se é — sem fugir, sem negar, sem se esconder — é o desafio mais humano que existe. E talvez o mais belo.
Rafa Pessato
Especialista em Autoconhecimento e Comportamento