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A EMBRIAGUEZ DA LIBERDADE: O que está por trás do medo de parar de beber?

“O homem está condenado a ser livre.” Jean-Paul Sartre

Muitos acreditam que o medo do alcoolista seja a abstinência. O copo vazio, o corpo trêmulo, a festa sem o anestésico. Mas há um medo ainda mais íntimo — e menos confessável. Um medo que não mora no fígado e nem no coração, mas na alma: o pavor da liberdade.

Sim, a liberdade. Não a liberdade de beber, mas a de ser. A de olhar para dentro e não ter mais onde se esconder. A sobriedade, quando profunda e verdadeira, não apenas limpa o sangue: ela desenterra fantasmas. Ela destranca portas. E revela, atrás da cortina da embriaguez, um vazio tão vertiginoso que muitos preferem continuar servindo-se — não de álcool, mas de distração.

Este não é um texto moralista. É uma viagem existencial por um terreno incômodo: o da autenticidade. E talvez, ao final, você perceba que a maior abstinência que um alcoolista enfrenta não é da substância… mas da ilusão.

 

O FARDO DA LIBERDADE

Jean-Paul Sartre, em O Ser e o Nada, provocou o mundo com uma frase que ecoa até hoje: “o homem está condenado a ser livre”. Condenado, sim. Porque, para Sartre, não existe essência pré-definida, alma com manual ou destino traçado. Existimos primeiro — e só depois decidimos o que seremos.

Isso parece libertador, certo? Não exatamente.

Quando tiramos as muletas — o álcool, os outros, as circunstâncias — descobrimos que somos inteiramente responsáveis pelas nossas decisões. Não dá mais para dizer “bebi porque minha vida é difícil”, ou “sou assim por causa do meu pai”. A sobriedade joga um holofote na liberdade radical de ser — e, com ela, vem o peso: a culpa, a dúvida, o medo de errar consigo mesmo.

Pois, no fundo, não é a garrafa que assusta. É o espelho.

 

O VAZIO QUE O ÁLCOOL EMBRIAGA

Se Sartre aponta a liberdade como condenação, Viktor Frankl — psiquiatra austríaco e sobrevivente de campos de concentração — nos fala do vazio existencial como epidemia silenciosa do século XX (e agora, também do XXI).

Em Em busca de sentido, Frankl afirma que a perda de sentido na vida humana gera um vácuo interno, que muitos tentam preencher com prazer imediato, consumo ou compulsões. O álcool é uma das tentativas mais eficazes — e fatais — de anestesiar essa ausência de significado.

Frankl cunhou o termo noogênico, ou seja, o sofrimento causado não por doenças psíquicas, mas pela falta de sentido. Algo que ressoa profundamente em muitos alcoolistas, cuja dor frequentemente vai além de traumas ou diagnósticos: é uma dor de não saber por que se vive.

O álcool, nesse contexto, funciona como um simbólico “líquido amniótico existencial”: acolhe, embala, entorpece — e impede o parto da consciência.

 

A NEUROCIÊNCIA DA DECISÃO

Você pode pensar: “Mas será que temos mesmo tanta liberdade? Ou somos marionetes do cérebro?”

A neurociência há tempos investiga essa questão. O experimento de Benjamin Libet, nos anos 1980, o qual conheci na minha primeira aula da pós-graduação em Neurociência e Comportamento, causou polêmica ao mostrar que o cérebro “decide” agir milissegundos antes de termos consciência disso. Isso foi interpretado, inicialmente, como a prova de que o livre-arbítrio seria uma ilusão.

Porém, estudos posteriores refinaram essa leitura: o cérebro antecipa tendências, mas o “eu consciente” ainda pode interferir antes da ação. Ou seja: temos um intervalo entre o impulso e a decisão — e é nesse microtempo que mora a liberdade.

O problema? A embriaguez reduz esse espaço de tempo. A impulsividade toma o lugar da reflexão. O “eu” fica em coma, e o piloto automático assume. Recuperar a sobriedade é reativar essa brecha entre estímulo e resposta — e ela pode ser insuportavelmente grande para quem não sabe quem está pilotando o próprio ser.

 

A AUTENTICIDADE COMO EMBRIAGUEZ SEM SUBSTÂNCIA

Imagine uma vida sem máscaras, onde você age de acordo com seus valores mais profundos — mesmo que isso desagrade, mesmo que seja difícil. Isso é autenticidade. E ela é embriagante. Mas não no sentido escapista do álcool: ela intoxica de presença.

Porém, viver de forma autêntica exige três coisas assustadoras:

  1. Autoconhecimento brutal — descobrir que você não é o que imaginava ser.
  2. Coerência entre o que sente, pensa e faz — mesmo que isso te afaste dos outros.
  3. Responsabilidade pelas próprias escolhas — sem poder culpar ninguém.

É por isso que muitos preferem a embriaguez da substância à da autenticidade. Porque esta última exige se despir das armaduras, dos rótulos, dos “sou assim porque…”. Ela exige o salto no vazio. E o ser humano, como já dizia Kierkegaard, tem “vertigem de liberdade”.

 

O ÁLCOOL COMO ESTRATÉGIA CONTRA O SER

O álcool não é apenas uma substância. Ele é, muitas vezes, uma filosofia vivida — uma recusa prática à liberdade, à responsabilidade, à angústia de existir.

Ele permite:

  • Fugir da decisão: “Bebi, por isso fiz o que fiz”.
  • Fugir do eu: “Não lembro, então não sou responsável”.
  • Fugir do tempo: “Só por hoje, esquece o amanhã”.
  • Fugir do olhar do outro: “Eu era o bêbado, não eu de verdade”.

Cada gole é uma estratégia. Um manifesto inconsciente contra o peso de ser livre. Um aplauso à inércia. Um adiamento do encontro consigo mesmo. Digo isso por que também fui assim.

 

A VERTIGEM DO ESPELHO LIMPO

O processo de sobriedade é, muitas vezes, solitário e silencioso. Não por falta de apoio, mas porque é uma travessia interior. É quando o espelho deixa de estar embaçado. Quando as desculpas evaporam. Quando o silêncio grita: “E agora, quem é você?”

É aí que muitos recaem. Não por fraqueza, mas por excesso de lucidez.

A embriaguez da liberdade, quando percebida pela primeira vez, pode ser insuportável. É por isso que a sobriedade precisa ser construída como espaço seguro — e não apenas como ausência de álcool. É preciso criar chão antes de tirar a bengala. Dar sentido antes de tirar a anestesia. E, principalmente, construir identidade antes de exigir comportamento.

Pois recusar o álcool não é, para muitos, o maior ato de coragem. É o segundo maior.

O primeiro é recusar a ilusão.

É olhar para o abismo do ser, sem garantias, sem trilhos, sem manual. É perceber que não há mais como dizer “foi mais forte que eu”, porque agora, só há o eu. Frágil, mas presente. Perdido, mas vivo.

Sartre diria que somos condenados à liberdade. Frankl lembraria que podemos encontrar sentido, mesmo no sofrimento. E a neurociência nos mostra que, entre o impulso e a ação, há uma fresta — um milagre — chamado decisão.

Talvez a verdadeira embriaguez não seja a da substância, mas a da coragem de ser. E, nesse caso, que a sobriedade seja o nosso mais lúcido porre.

 


Rafa Pessato

Especialista em Autoconhecimento e Comportamento

rafapessato.eu