Home / SUPERAR / BURNOUT SOCIAL E ÁLCOOL COMO VÁLVULA: o cansaço coletivo e o novo vício do desempenho

BURNOUT SOCIAL E ÁLCOOL COMO VÁLVULA: o cansaço coletivo e o novo vício do desempenho

A gente anda exausto. Não só do trabalho — da vida. E tem algo muito errado quando descansar vira privilégio, e beber, rotina. Quando o copo é a pausa mais acessível, o corpo é o primeiro a avisar: tem algo que a gente não tá querendo sentir.

O nome disso não é só estresse. É burnout social — o esgotamento de ter que “funcionar” o tempo todo, mesmo quando a alma quer deitar. E é nesse cenário de sobrecarga emocional, afetiva, estética, digital, que o álcool entra sorrateiro. Não como festa, mas como fôlego. Não como celebração, mas como anestesia.

 

ALÉM DO EXPEDIENTE: A VIDA TAMBÉM VIROU TRABALHO

A ideia de que o burnout só vem do excesso de trabalho é ultrapassada. A verdade é que a gente trabalha o tempo todo — inclusive fora do expediente. Trabalha pra parecer feliz no Instagram. Pra ser desejável nos apps de encontro. Pra manter relações que já não fazem sentido, mas que “pegaria mal” largar. Trabalha pra sustentar uma imagem, um ritmo, um humor que nem sempre são reais.

É performance atrás de performance.

A felicidade virou uma meta, o corpo uma vitrine, o amor uma conquista e a vida, um currículo emocional. E o álcool? O álcool virou o botão de desligar. A pausa no script. O único momento em que a gente pode falhar, tropeçar, dizer o que sente — e depois culpar o drink.

 

O CANSAÇO DE SER ALGUÉM QUE VOCÊ NÃO AGUENTA MAIS SUSTENTAR

O alcoolista de hoje não é só aquele que bebe todos os dias, escondido, aos goles. É também aquele que vive num mundo que cobra tanto, que a única forma de continuar é entorpecido. É aquele que acorda já cansado da própria vida. Que sorri nas fotos, mas chora no banho. Que se envergonha do exagero, mas não sabe como parar.

Tem muita gente usando álcool pra suportar o “eu” que criou pra si mesmo. Um “eu” forte, produtivo, sociável, inteligente, desejável. Só que manter esse personagem cansa. E muito.

Nietzsche dizia que “tornar-se quem se é” exige coragem. Mas como ser autêntico num mundo que só valoriza a alta produtividade e performance?

A bebida entra como um atalho. Uma forma de continuar agindo como se tudo estivesse bem. De não pensar. De não sentir. De não lembrar.

 

HIPERCONEXÃO, HIPERESTÍMULO, HIPEREXIGÊNCIA

Vivemos na era do hiper. Tudo ao mesmo tempo, o tempo todo. Hiperconectados, hiperestimulados, hiperexigidos.

Você acorda com 23 notificações. Antes de escovar os dentes, já viu três corpos sarados, duas viagens paradisíacas, uma demissão, um casamento e um desabafo de alguém que você nem conhece. E isso antes do café.

A mente não tem mais onde descansar.

A vida virou uma timeline infinita, e estar offline é quase um pecado social. Desligar é sumir. Desacelerar é fracassar. Descansar é ser preguiçoso.

É nesse cenário que o álcool aparece como um santuário profano. Um espaço onde ninguém espera tanto de você. Onde você pode simplesmente… ser. Mesmo que seja só por algumas horas.

 

O ÁLCOOL COMO SINTOMA — E NÃO CAUSA

Vamos ser honestos: o problema não é só a bebida. O problema é o que ela substitui.

O álcool vem no lugar do descanso, da pausa, da escuta, da presença. Ele preenche uma ausência de si. Uma saudade do que a gente era antes de virar máquina.

A gente bebe porque quer esquecer. Ou porque quer lembrar. Ou porque não sabe o que quer. A verdade é que o álcool se tornou uma resposta rápida pra perguntas que exigiriam tempo — e coragem.

E o que poucos falam é que parar de beber não dói só porque o corpo pede. Dói porque a gente começa a encarar aquilo que tava evitando há anos: o vazio, o medo, a solidão, a mentira.

 

QUANDO A ANESTESIA VICIA MAIS QUE A DOR

A dor da lucidez assusta. Sentir tudo, de novo, sem filtro, é quase um choque.

É por isso que muita gente recai. Porque o mundo sóbrio é mais denso, mais lento, mais sincero. E a gente foi treinado pra tudo, menos pra lidar com a verdade real de ser quem se é.

Mas saiba, com o tempo, a dor vira bússola. E ela aponta pra onde você precisa olhar. Ela revela o que precisa ser curado.

A bebida mascara, mas não resolve. E a sobriedade assusta, mas transforma. 

Como dizia Sartre, “o inferno são os outros” — assim, às vezes, o inferno somos nós tentando ser o que os outros esperam.

 

SUPERAR É SE RECONECTAR AO RITMO INTERNO

A verdadeira recuperação não é só parar de beber. É aprender a habitar o próprio corpo, o próprio tempo, o próprio silêncio. É descobrir que você não precisa se render ao vício da performance pra merecer existir.

É reaprender a descansar.

A desacelerar sem culpa. A dizer “não” sem medo. A falhar sem vergonha.

É se permitir ser real — mesmo quando isso não rende curtidas, nem aplausos.

A cura não está em evitar a dor. Está em conseguir atravessá-la sem se abandonar.

 

FICAR SÓBRIO É VOLTAR PRA CASA

A sobriedade, no fundo, é um retorno. Um reencontro com o que você perdeu de si ao tentar dar conta de tudo. É o caminho de volta pra um lugar onde o simples tem valor. Onde o afeto é sincero. Onde o cansaço não é sinal de fraqueza, mas de presença.

Ser sóbrio hoje é um ato de resistência. Contra um sistema que lucra com a sua fuga. Contra uma cultura que exalta a pressa e ridiculariza o cuidado.

É escolher sentir.

É dizer: “eu tô cansado, mas não vou me anestesiar”. É assumir que a vida sem atalhos pode doer mais no começo, mas cura mais no fim.

 

O SILÊNCIO DEPOIS DO BARULHO

Se você tá lendo esse texto com um nó na garganta, talvez seja porque ele te atravessou. Porque você reconhece esse cansaço. Porque você já tentou calar essa dor com álcool, risadas forçadas, stories ensaiados.

Mas e se o que você chama de fraqueza for, na verdade, o seu corpo pedindo verdade?

E se, ao invés de mais um copo, você experimentasse uma pausa?

E se, no silêncio que vier, você escutasse uma nova pergunta: “O que em mim ainda precisa ser sentido?”

A vida performática pode até render aplausos. Mas a vida real — mesmo falha, mesmo lenta, mesmo sem filtro — é a única onde a gente pode, de fato, respirar.

E talvez o maior luxo da sobriedade não seja o controle. Mas a liberdade de ser inteiro, mesmo quando não se está brilhando.

 


Rafa Pessato

Especialista em Autoconhecimento e Comportamento

rafapessato.eu