Você já parou pra se perguntar quem você é quando não está bebendo?
Não quem você parece — mas quem você realmente é, ali no silêncio, no tédio, no domingo de tarde.
Talvez essa pergunta assuste. Talvez ela tenha sido justamente o motivo de você começar a beber. Ou seguir bebendo.
O álcool ajuda a esquecer que somos livres — e que essa liberdade cobra escolhas.
Acontece que o mundo agora parece estar descobrindo a sobriedade. Mocktails no cardápio. Influencers que “não bebem, mas brilham”.
De repente, não beber virou… cool. Mas será que isso é libertação ou só mais uma forma de escapar de si?
UM BRINDE AOS DADOS (PORQUE O CORPO TAMBÉM FALA)
Vamos aos fatos, antes de mergulhar nos sentidos. Segundo a IWSR (International Wine & Spirits Research), que monitora o mercado global de bebidas:
- O consumo mundial de cerveja caiu 1% em 2024. Já a de cervejas sem álcool cresceu 9%.
- Entre 2022 e 2024, 61 milhões de pessoas passaram a consumir bebidas sem ou com baixo teor alcoólico.
- No Brasil, as vendas de bebidas sem álcool cresceram mais de 400% entre 2018 e 2024 — e o país já é o segundo maior mercado mundial de cerveja zero.
- A previsão é de crescimento contínuo até 2028, com taxas acima da média global.
E não para por aí.
No Datafolha de maio de 2025, 53% dos brasileiros disseram ter reduzido o consumo de álcool no último ano. Só 12% aumentaram. O restante manteve.
Isso num país onde o álcool ainda custa R$ 18,8 bilhões por ano ao sistema público de saúde, segundo a Fiocruz.
E onde, silenciosamente, 12 pessoas morrem por hora por causas ligadas ao seu uso abusivo.
A BEBIDA COMO TENTATIVA DE FUGA DO PESO DE SER
Jean-Paul Sartre dizia que estamos condenados à liberdade. Ou seja, não escolher já é uma escolha. Fugir de si é um modo de estar no mundo. Beber, muitas vezes, é isso: um modo de adiar a decisão de ser. Um entorpecimento voluntário para escapar do fardo de se olhar de frente.
A sobriedade, então, não é só sobre saúde — é sobre coragem.
Coragem de suportar a própria lucidez.
Coragem de existir sem escudo.
Coragem de olhar pro espelho e dizer: “é comigo”.
E se você está nesse caminho — tentando parar ou manter sua sobriedade — talvez já tenha percebido: não tem atalho.
Só tem o agora. E o agora pede presença.
A NOVA ESTÉTICA DA SOBRIEDADE: ALÍVIO OU ANESTESIA?
Nos últimos anos, ser sóbrio ganhou novos rostos: corpos bonitos, drinks com lavanda, sorrisos em brunches.
A estética do bem-estar (o tal wellness) se aliou à sobriedade, transformando-a em produto, narrativa, filtro.
E tudo bem, até certo ponto. Porque, sim, os mocktails podem acolher. Ajudam quem está começando, reduzem a ansiedade social.
Mas também podem enganar: fazer parecer que parar de beber é só uma questão de “boa escolha” — e não de sobrevivência.
A filósofa Simone de Beauvoir dizia que a liberdade exige transcendência — ou seja, ir além do que se é agora.
Mas o mercado muitas vezes faz o oposto: nos mantém entretidos, anestesiados, bonitos. Pede que performemos. Que pareçamos felizes. E a sobriedade real não tem a ver com parecer. Ela tem a ver com sentir. Com suportar. Com atravessar.
MOCKTAILS AJUDAM? DEPENDE DO QUE VOCÊ ESTÁ TENTANDO ESQUECER
Se você bebeu por anos como forma de lidar com a dor, o vazio ou a sensação de não-pertencimento, talvez precise ir além do copo. Porque trocar álcool por hibisco com limão pode aliviar, mas não resolve.
É como dizia Kierkegaard: “a angústia é a vertigem da liberdade”.
Quando paramos de beber, ela chega — a vertigem de estar vivo, inteiro, responsável por si.
Os dados mostram que menos de 25% das pessoas se mantêm sóbrias por mais de um ano sem apoio. Com tratamento estruturado, esse número sobe para 60%.
Ou seja: você não precisa fazer isso sozinho.
Mas precisa querer atravessar — não apenas substituir.
E O BRASIL? ENTRE A FESTA E O SILÊNCIO
Nosso país vive um paradoxo.
Por um lado, reduzimos o consumo (mais da metade dos adultos, segundo o Datafolha). Por outro, seguimos adoecendo — física, emocional e socialmente.
O álcool ainda é ferramenta de socialização, moeda afetiva, válvula para suportar o insuportável.
E por isso mesmo, o crescimento das bebidas sem álcool diz muito: queremos outra forma de estar juntos. Sem cair. Sem apagar.
Mas isso pode se tornar moda — e não consciência.
Tendência — e não transformação. E não se sustentar no longo prazo.
VOCÊ QUER PARAR DE BEBER? ENTÃO A PERGUNTA É OUTRA
A pergunta não é “como parecer sóbrio”. É: o que você vai fazer com o que sente quando não estiver mais anestesiado?
Você não precisa postar sua jornada. Você não precisa brindar com chá de hibisco. Apesar de poder, sim, fazer tudo isso. Mas o que você precisa mais que tudo é honesto com você.
Como diria Albert Camus: “no meio do inverno, descobri que havia dentro de mim um verão invencível”.
A sobriedade não é sobre controlar. É sobre aceitar.
Não é sobre ser melhor. É sobre ser inteiro.
E inteiro, às vezes, significa imperfeito. Mas consciente. Presente.
Rafa Pessato
Especialista em Autoconhecimento e Comportamento