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SEM ANESTESIA: Como Superar a Necessidade de Alívio Rápido na Sobriedade

“Entre o estímulo e a resposta existe um espaço. Nesse espaço está o nosso poder de escolher a resposta. Na nossa resposta está o nosso crescimento e nossa liberdade.” Viktor Frankl

A TENTAÇÃO DO ALÍVIO

No exato segundo em que a angústia aperta o peito, o cérebro humano — esse órgão inteligente e desesperado — dispara uma missão: encontrar alívio. Rápido. Urgente. Qualquer coisa que traga conforto imediato: um gole, um clique, um doce, um scroll, uma compra.

Na jornada da sobriedade, essa urgência por anestesiar a dor é um dos maiores inimigos. Muitas pessoas até decidem parar de beber, mas sem estarem prontas para encarar a vida sem atalhos químicos. Querem a transformação, mas não a travessia. Querem a cura, mas não a febre. Querem ficar sóbrias, mas não sentir.

É aqui que muitas recaem. Ou migram do álcool para outro vício: trabalho, sexo, comida, celular. A lógica do alívio rápido continua mandando.

Mas e se a saída não for aliviar, e sim atravessar?

 

A DOR QUE CURA: O DESCONFORTO COMO CAMINHO

O desconforto é uma ponte, não um beco sem saída. Só que, como diz o psiquiatra Carl Jung, “aquilo que você resiste, persiste”. A dor emocional que tentamos anestesiar com álcool continua ali, subterrânea, moldando decisões, relacionamentos e a própria identidade.

Neurocientificamente, o álcool ativa o sistema dopaminérgico mesolímbico — o “caminho da recompensa” — oferecendo prazer artificial e rápido (Koob & Volkow, 2016). Mas esse prazer vem à custa de um preço alto: o rebaixamento da capacidade natural do cérebro de produzir prazer genuíno. O que era festa vira fome. Fome de dopamina, de esquecimento, de sossego.

Superar o vício, portanto, não é apenas parar de beber. É reaprender a sentir. A ficar. A suportar. É aceitar que a vida, às vezes, dói — e que isso não é um erro. É um processo.

 

A ILUSÃO DO ALÍVIO RÁPIDO

A lógica do alívio imediato está enraizada em nossa cultura. O marketing promete soluções instantâneas: “Perca 10kg em 10 dias”, “Recupere sua autoestima em 3 passos”. Essa mentalidade é incompatível com o processo profundo de se libertar de uma dependência.

Segundo Gabor Maté, médico canadense e referência em vícios, “a pergunta não é por que o vício, mas por que a dor?” (Maté, 2018). O vício é uma tentativa de alívio diante de dores psíquicas profundas: traumas, vazios, inseguranças.

Mas o alívio rápido não cura. Só adia. E o preço do adiamento é a própria vida.

 

O PULO PARA OUTRA JAULA: MIGRAÇÃO PARA NOVAS DEPENDÊNCIAS

Quem tenta parar de beber sem encarar a raiz da dor, frequentemente migra para outras formas de fuga. A isso se dá o nome de “transferência de dependência”. A pessoa larga o álcool, mas entra compulsivamente no trabalho, na academia, na pornografia, no celular, no açúcar.

O cérebro viciado está em busca de dopamina — a molécula do “quero mais”. Se você não o ensina a buscar prazer genuíno, ele vai buscar alívio substituto.

Essas novas fugas podem parecer socialmente mais aceitáveis, mas continuam mantendo a lógica da anestesia: evitar o encontro com a própria dor.

 

VAI DOER. E ISSO É UM BOM SINAL

Parar de beber e permanecer sóbrio é, inevitavelmente, doloroso. Não porque a sobriedade seja sofrimento em si, mas porque o que estava encoberto começa a aparecer: traumas não tratados, relações tóxicas, solidão, confusão sobre o próprio eu.

Isso assusta. Mas também liberta. Porque, ao contrário do que o vício ensina, a dor não é o fim: ela é o começo de um reencontro.

Segundo o psiquiatra Thomas Insel, ex-diretor do Instituto Nacional de Saúde Mental dos EUA, a verdadeira cura para os vícios está menos em medicamentos e mais em “conexão, pertencimento e sentido” (Insel, 2022). Três coisas que não vêm em forma de pílula — e nem em forma de copo.

 

AS FERRAMENTAS DA TRAVESSIA

Não se atravessa o deserto da abstinência na força do ódio. É preciso criar fontes internas de sentido e prazer. Abaixo, algumas ferramentas essenciais para suportar o desconforto e resistir à tentação do alívio rápido:

 

1. Respiração Consciente

Parece simplório, mas é ciência: a respiração profunda ativa o sistema parassimpático, reduzindo a ansiedade e desacelerando o impulso de agir no automático (Huberman Lab, 2021). Respirar antes de reagir é a primeira forma de reconquistar o espaço entre estímulo e resposta.

 

2. Diários e Escrita Terapêutica

A escrita ajuda a nomear o caos interno e transformá-lo em narrativa. “Escrever é uma forma de tomar posse de si mesmo”, dizia Clarice Lispector. Estudos mostram que escrever sobre emoções profundas pode reduzir sintomas de depressão e ansiedade (Pennebaker, 2004).

 3. Reprogramação de Fontes de Prazer

O cérebro precisa aprender novas formas de buscar dopamina: caminhadas na natureza, conexões humanas, arte, música, espiritualidade. Prazeres mais lentos, mas sustentáveis.

 

4. Comunidade de Apoio

Sozinho, o sistema de recompensa fica vulnerável. Em grupo, há espelhamento, reforço positivo, afeto. Programas como Alcoólicos Anônimos, grupos terapêuticos ou até círculos de partilha podem ser pilares fundamentais na travessia.

 

5. Mindfulness: o poder de não fugir

Estudos demonstram que a prática da atenção plena reduz recaídas e aumenta a tolerância ao desconforto (Bowen et al., 2014). Meditar não é se livrar da dor, mas aprender a estar com ela, sem se fundir a ela.

 

6. Psicoterapia com abordagem de trauma

Como mostra a obra “O Corpo Guarda as Marcas”, de Bessel van der Kolk (2014), traumas não resolvidos são gatilhos constantes para o vício. Curar essas feridas é libertar o corpo do ciclo de sobrevivência.

 

A DESINTOXICAÇÃO EMOCIONAL

Parar de beber é apenas a primeira camada da sobriedade. A real transformação está na desintoxicação emocional: aprender a tolerar frustrações, encarar os vazios, atravessar a dor sem correr para uma anestesia.

Isso é, na prática, crescer.

Como dizia Pema Chödrön, monja budista: “A cura vem quando permanecemos, sem tentar escapar.”

A permanência é o antídoto para o alívio rápido.

 

O PRAZER DA LENTIDÃO

Existe um tipo de prazer que o vício não conhece: o prazer da conquista lenta, do vínculo profundo, da paz que não vem de fora, mas de dentro. Esse prazer não causa ressaca. Não cobra caro. Não exige fuga.

Ele é construído, dia após dia, no silêncio de quem decide voltar para si.

 

APRENDER A FICAR

Superar a necessidade de alívio rápido não é aprender a ser forte. É aprender a ser verdadeiro. A dizer: “sim, estou com medo”, “sim, estou triste”, “sim, está doendo” — e, ainda assim, ficar.

A sobriedade é a arte de permanecer presente, mesmo quando tudo em nós quer fugir. É o retorno à inteireza, mesmo que cheia de rachaduras.

Porque, no fim das contas, talvez seja isso a liberdade: poder sentir tudo — e ainda assim escolher.


Rafa Pessato

Especialista em autoconhecimento e comportamento

rafapessato.eu