Café, um cigarro, um trago… companheiros da solidão.
Há um começo que quase nunca é contado. Antes do diagnóstico, antes da vergonha, antes da palavra dependência ou adicção, houve um momento em que o álcool entrou como presença. Não como ameaça. Não como destruição. Entrou como quem senta ao lado quando a casa está silenciosa demais. Como quem ajuda a atravessar a noite. Como quem empresta um pouco de calor quando o mundo parece frio.
É isso que a canção Revanche diz sem pedir licença: café, cigarro, um trago — companheiros da solidão. A frase não romantiza; descreve. O início raramente é dramático. O início é funcional.
Este texto não começa condenando. Começa compreendendo. Porque ninguém se torna alcoolista por desejo de ruína. Torna-se porque, em algum ponto, o álcool cumpriu uma função psíquica, existencial e social. E funcionou.
A SOLIDÃO QUE PEDE ALGO PARA FICAR
A solidão moderna não é apenas ausência de gente. É desconexão. É a sensação de não caber no próprio tempo, de não ser ouvido nem por si. É estar cercado de estímulos e ainda assim sentir um vazio que não se explica. Na clínica, ela aparece como inquietação, tédio, ansiedade difusa. Na vida cotidiana, como noites longas demais, domingos intermináveis, pensamentos que não descansam.
Do ponto de vista existencial, a solidão é uma condição humana. Mas a cultura contemporânea a intensificou. Produzimos mais desempenho do que presença, mais ocupação do que sentido. Nesse cenário, algo precisa fazer companhia. Algo precisa ficar.
O álcool entra aí. Não como vilão, mas como resposta possível. Ele ocupa o lugar de um outro ausente. Marca o tempo. Cria ritual. Dá contorno às horas. Um copo à noite não é só bebida: é pausa, é limite, é sinal de que o dia terminou. É alguém que está ali.
QUANDO O CÉREBRO APRENDE O CAMINHO DO ALÍVIO
Há uma razão científica para que essa companhia pareça eficaz no começo. O álcool é um depressor do sistema nervoso central. Reduz a atividade de áreas ligadas à vigilância, à ansiedade e à ruminação mental. Em termos simples: acalma. Diminui o barulho interno. Facilita o sono. Afrouxa a tensão do corpo e da mente.
O cérebro aprende rápido aquilo que alivia rápido. Circuitos de recompensa são ativados. A associação se estabelece: solidão → desconforto → álcool → alívio. Nada disso exige intenção destrutiva. É aprendizado neurobiológico básico.
Relatórios da Organização Mundial da Saúde mostram que o uso de álcool como estratégia para lidar com estresse emocional e isolamento social aumenta significativamente o risco de consumo nocivo ao longo do tempo. Não porque a pessoa seja fraca, mas porque o cérebro é eficiente em repetir o que funciona.
O problema não é o alívio. É o preço do alívio repetido.
DO GESTO AO HÁBITO: QUANDO A ESCOLHA SE ESTREITA
No início, o gesto é pontual. Um copo para relaxar. Dois para dormir melhor. Um ritual que parece inofensivo. Aos poucos, a frequência aumenta. Não por prazer, mas por necessidade. O corpo pede. A mente espera. O dia parece incompleto sem aquele encerramento.
A psicanálise chama atenção para esse ponto de virada silencioso: quando a função deixa de ser escolhida e passa a ser automática. O álcool já não é buscado; ele é esperado. Não se pergunta mais “vou beber?”, mas “quando vou beber?”. A escolha se estreita sem alarde.
Culturalmente, isso é facilitado. O beber diário é normalizado. Está nas propagandas, nos encontros, nas piadas. A fronteira entre uso e abuso fica borrada. A solidão individual se mistura à permissividade coletiva.
O que começou como companhia começa a ocupar mais espaço do que deveria.
QUANDO A COMPANHIA PASSA A COBRAR
Há um momento em que o álcool deixa de apenas acompanhar e começa a exigir. Exige mais dose para produzir o mesmo efeito. Exige horários fixos. Exige prioridade. A tolerância aumenta. O corpo se adapta. O cérebro recalibra seus níveis de prazer.
Do ponto de vista existencial, algo fundamental acontece aqui: a liberdade diminui. Não porque alguém perdeu caráter, mas porque a repetição cria trilhos. E trilhos não permitem muitos desvios.
É nesse ponto que a frase da música ganha peso: “hoje em dia somos todos escravos”. Escravos de quê? De um circuito que prometia alívio e agora cobra manutenção. De uma rotina que não se escolhe mais conscientemente. De um companheiro que passou a conduzir.
A CONTA QUE NÃO CHEGA SÓ PARA QUEM BEBE
“E quem é que vai pagar por isso?” A resposta nunca é simples. O alcoolista paga com o corpo, com o humor, com a memória, com o sono. Paga com a autoestima corroída e com a sensação de falhar repetidamente consigo mesmo.
Mas não paga sozinho. O parceiro paga com vigilância constante. Os filhos pagam com insegurança emocional. A família paga com conflitos silenciosos. O trabalho paga com absenteísmo. O sistema de saúde paga com internações, tratamentos, emergências. A cultura paga ao naturalizar uma substância de alto impacto coletivo.
Dados da Organização Mundial da Saúde indicam que o uso nocivo de álcool é responsável por mais de três milhões de mortes por ano no mundo e gera custos econômicos que podem chegar a até 3% do PIB em alguns países. A dependência é um fenômeno social antes de ser apenas individual.
A conta sempre circula.
A SOLIDÃO QUE AUMENTA QUANDO A BEBIDA PROMETIA DIMINUIR
Há um paradoxo cruel no alcoolismo: beber para não se sentir só e terminar mais isolado. Com o tempo, surgem o segredo, a vergonha, o beber escondido. Convites são evitados. Conversas se empobrecem. O álcool, que antes mediava encontros, agora os substitui.
Psicanaliticamente, a vergonha se torna um afeto central. Vergonha de precisar. Vergonha de não conseguir parar. Vergonha de ser visto. A solidão se aprofunda não porque falte gente, mas porque falta possibilidade de ser verdadeiro.
Estudos mostram que a solidão subjetiva é um dos principais gatilhos para recaídas, mesmo após períodos de abstinência. O companheiro químico deixou um vazio que ainda não encontrou substituto simbólico.
O LUTO PELO ÁLCOOL: RECONHECER ANTES DE SE DESPEDIR
Pouco se fala sobre isso, mas parar de beber envolve luto. Não apenas pela substância, mas pelo que ela representava. Pelo alívio imediato. Pela sensação de companhia. Pelo ritual que organizava o tempo.
Ignorar esse luto é um erro clínico e humano. Ninguém abandona algo que ofereceu amparo sem sentir falta. Reconhecer essa ambivalência — saudade e alívio — é parte do processo de amadurecimento psíquico.
Não se trata de romantizar o álcool, mas de reconhecer sua função passada para poder construir outra coisa no lugar. Sem isso, a abstinência vira privação. Com isso, pode virar escolha.
SOBRIEDADE: APRENDER A NÃO SE ABANDONAR
A sobriedade não começa com festa. Começa com silêncio. Com a decisão íntima de não se trair mais para não se sentir só. Começa quando alguém diz, como na música, “eu não quero mais nenhuma chance” — não no sentido de punição, mas de limite.
Do ponto de vista existencial, é um gesto ético consigo. Sustentar a própria solidão sem anestesia. Do ponto de vista psicanalítico, é a construção lenta de novos suportes simbólicos: vínculos, palavras, rotinas, presença.
Estudos indicam melhora progressiva do humor, do sono, da cognição e das relações sociais após a interrupção do consumo, mesmo quando o início é difícil. A solidão não desaparece magicamente, mas muda de qualidade. Pode virar solitude. Presença consigo.
DESPERTAR
O álcool foi companhia. No início. Depois virou custo. Reconhecer essa trajetória é o primeiro passo do despertar. Não para culpar, mas para compreender. Não para prometer felicidade, mas para recuperar autonomia.
O despertar não é parar de beber.
É parar de se abandonar.
E isso, embora difícil, é profundamente humano.
Rafa Pessato
Embriague-se de si!










