“Somos quem podemos ser.
Sonhos que podemos ter.”
Engenheiros do Hawaii
Há uma pergunta que costuma surgir quando o álcool sai de cena — ou quando começa a sair. Ela não vem de forma organizada, nem filosófica, nem elegante. Às vezes, nem vem como pergunta. Vem como um vazio meio bruto, às vezes assustador, às vezes silencioso demais.
Vem como uma afirmação seca, quase automática:
“Eu não sou nada além de um bêbado.”
Essa frase não nasce do pensamento racional. Ela nasce do cansaço, da culpa acumulada, do olhar do outro que foi sendo introjetado ao longo do tempo. Nasce do rótulo repetido tantas vezes que passa a soar como verdade.
Durante muito tempo, o álcool ocupou espaço demais. Não só na rotina, mas na identidade. Ele organizava o dia, justificava comportamentos, anestesiava dores, criava pertencimentos artificiais, dava uma sensação provisória de contorno ao eu. Quando ele começa a faltar, algo desmorona — mas algo também se revela.
E o que se revela, no início, nem sempre é liberdade. Muitas vezes é a sensação de não saber mais quem se é sem aquilo que, por tanto tempo, sustentou tudo.
O ALCOOLISTA COMO PARTE DA NARRATIVA — NÃO COMO DEFINIÇÃO FINAL
Ser alcoolista não é um detalhe irrelevante da história de alguém. Não é um “capítulo pequeno”. É um traço importante, um acontecimento que marca, que atravessa, que deixa consequências reais no corpo, nas relações, na memória e no psiquismo.
Negar isso não ajuda.
Mas reduzir a pessoa inteira a isso também não.
O problema começa quando o alcoolismo deixa de ser compreendido como um modo de funcionamento e passa a ser vivido como uma identidade total. Quando o sujeito deixa de dizer “eu tenho um problema com álcool” e passa a sentir, mesmo sem palavras: “eu sou isso”.
A psicanálise nos ajuda a fazer uma distinção fundamental:
um sintoma não é o sujeito.
O alcoolismo pode ser entendido como um sintoma — grave, complexo, destrutivo em muitos casos —, mas ainda assim um sintoma. Ele aponta algo, comunica algo, responde a algo. Ele não esgota quem a pessoa é.
O sintoma fala.
Mas ele não é a voz inteira.
SOMOS QUEM PODEMOS SER: IDENTIDADE COMO PROCESSO, NÃO COMO ESSÊNCIA FIXA
A frase da música dos Engenheiros do Hawaii atravessa gerações porque toca num ponto sensível da existência: não somos quem gostaríamos de ser, nem quem imaginamos ser — somos quem podemos ser, nas condições que temos, com os recursos que conseguimos acessar naquele momento da vida.
Isso vale especialmente para quem viveu sob a lógica da adicção.
A modernidade, como nos lembra Zygmunt Bauman, é líquida. As identidades não são mais sólidas, herdadas, previsíveis. Não há mais roteiros claros. Não existe um manual dizendo quem você deve ser depois que para de beber.
E isso assusta.
Bauman afirma que a identidade não é um quebra-cabeça com imagem final garantida. Não há um modelo prévio, não há instruções completas, não há certeza de acabamento. A identidade é algo que se constrói vivendo — errando, tentando, recuando, avançando.
Para o alcoolista, isso pode ser especialmente desafiador, porque o álcool funcionava como uma falsa cola identitária. Ele dava uma sensação de forma. Tirado isso, tudo parece escorrer pelas mãos.
Mas talvez — e só talvez — isso não seja um defeito.
Talvez seja o começo da liberdade.
O EU ALÉM DO ÁLCOOL: O QUE SOBRA QUANDO A ANESTESIA CAI?
Quando o álcool sai, ou começa a sair, algo sobra.
Nem sempre o que sobra é confortável.
Sobra ansiedade.
Sobra tédio.
Sobra silêncio.
Sobra uma sensibilidade que antes estava amortecida.
Mas sobra também algo essencial: o desejo.
A adicção não é excesso de prazer. É pobreza de sentido.
Não é vontade demais — é direção de menos.
O alcoolista não é apenas compulsivo.
Ele é, antes de tudo, um ser desejante que perdeu o caminho do próprio desejo.
Desejo de pertencimento.
Desejo de descanso.
Desejo de silêncio interno.
Desejo de sentido.
O álcool oferece uma promessa rápida: alívio, suspensão da dor, sensação de presença. Mas cobra um preço alto: o afastamento progressivo de si mesmo.
Quando a bebida sai, o desejo reaparece — ainda desorganizado, ainda confuso, ainda frágil. Mas vivo.
E é nesse ponto que a pergunta muda de forma.
Não é mais apenas: quem sou eu sem álcool?
Passa a ser: quem posso me tornar agora que estou mais lúcido?
NÃO SOMOS APENAS EXCESSIVOS — SOMOS SERES EM BUSCA DE SENTIDO
A leitura moralizante do alcoolismo costuma reduzir tudo ao excesso: excesso de bebida, excesso de emoção, excesso de impulsividade, excesso de prazer.
Por trás do excesso, contudo, quase sempre há falta.
Falta de sentido.
Falta de lugar.
Falta de escuta.
Falta de elaboração psíquica da própria dor.
A filosofia existencialista nos lembra que o ser humano não nasce pronto. Ele se constrói. E se constrói, muitas vezes, em meio ao desamparo.
Viktor Frankl já apontava: quando o sentido falta, o sofrimento ocupa o espaço. E o sofrimento sem nome busca anestesia.
O álcool, nesse contexto, não é apenas uma substância.
É uma tentativa — falha, mas compreensível — de resolver uma angústia existencial.
Reconhecer isso não romantiza o alcoolismo.
Humaniza o alcoolista.
QUEM SOMOS DE VERDADE NÃO É UMA ESSÊNCIA OCULTA — É UMA PRÁTICA DIÁRIA
Perfeito. O que você traz é um ajuste conceitual fino e maduro — e vale lapidar o texto para que isso fique claro, sem cair nem no “tudo já está dentro” nem no “você é uma folha em branco”. Eis uma versão retrabalhada, mais precisa, fluida e publicável, mantendo seu pensamento:
Há, sim, algo a se descobrir sobre si.
E há muito a se construir.
A vida não começa do zero quando o álcool sai de cena. Não se parte para a construção de si a partir do nada. Existe uma folha — e ela não está em branco. Pode estar riscada, rasgada, manchada de corretivo. Pode carregar erros, excessos, rabiscos feitos às pressas. Mas também traz letras, desenhos, cores, poemas inacabados. Há vestígios de desejo ali. Há tentativas. Há história.
Existe uma armadilha comum no processo de recuperação: a ideia de que há um “eu verdadeiro” escondido atrás do álcool, esperando ser revelado como um tesouro intacto, puro, finalmente seguro. Essa fantasia promete alívio — mas entrega frustração.
Porque, quando a pessoa para de beber, ela não encontra um eu pronto, iluminado, coerente. Encontra alguém em obra. Alguém atravessado pelo tempo, pelas perdas, pelas escolhas feitas e pelas que nunca chegaram a acontecer.
O eu não é dado.
O eu é produzido.
Produzido na relação com o outro, com o mundo, com a falta, com o tempo. Produzido no embate entre o que se foi, o que se é agora e o que ainda pode vir a ser.
Você não precisa apenas “descobrir quem é”, como se houvesse uma essência escondida esperando resgate.
Você precisa se construir — aos poucos, imperfeitamente, com recaídas simbólicas, com dúvidas reais, com escolhas pequenas e sustentadas no cotidiano.
O eu além do álcool não é um estado final.
Não é um lugar de chegada.
É um movimento.
E talvez seja exatamente isso que o torne vivo.
SOMOS QUEM PODEMOS SER — E ISSO MUDA TUDO
A frase da música não é um consolo fácil.
Ela não diz que tudo vai dar certo.
Ela diz algo mais exigente: há um limite real entre o que somos, o que desejamos e o que conseguimos sustentar. E é dentro desse limite que a vida acontece.
Somos quem podemos ser hoje — com o corpo que temos, com a história que nos atravessou, com os recursos emocionais disponíveis neste momento. Não com a versão idealizada de nós mesmos. Não com o personagem que gostaríamos de apresentar ao mundo.
Amanhã, talvez possamos ser um pouco mais.
Ou um pouco diferente.
Ou apenas um pouco mais honestos.
No alcoolismo, esse reconhecimento é duro. Porque o álcool cria a ilusão de um “eu expandido”, mais corajoso, mais solto, mais interessante. Quando ele sai, o eu parece menor — mas não é. Ele está apenas sem anestesia.
O alcoolismo fez parte da sua narrativa. Moldou comportamentos, relações, escolhas, perdas. Em muitos casos, ainda faz. Isso não se apaga. Não se nega. Não se reescreve como se nunca tivesse existido.
Mas ele não precisa ser o título da sua história inteira.
Você é mais do que o sintoma que tentou dar conta da sua dor.
Mais do que os excessos.
Mais do que as recaídas.
Mais do que o passado que insiste em falar mais alto.
O eu além do álcool não será perfeito — e isso é uma boa notícia. A perfeição é outra forma de fuga. O que se constrói na sobriedade é algo mais real: um eu possível, falho, sensível, às vezes cansado, mas presente.
E possível, aqui, não é pouco.
Para quem viveu tanto tempo anestesiado, poder sentir sem precisar fugir já é um gesto de coragem. Poder sustentar o incômodo, o silêncio, a alegria simples, a dor sem atalhos — isso não é fraqueza. É o início da liberdade.
Liberdade não como ausência de limites,
mas como capacidade de habitar a própria vida.
E isso, para um alcoolista, já é imenso.
Rafa Pessato
Embriague-se de si










