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É possível PARAR DE BEBER no FINAL DO ANO? Sobriedade, redução de danos e escolhas possíveis

Todo final de ano parece carregar um acordo silencioso: agora não é hora de pensar nisso. As festas chegam, o ritmo muda, as emoções se intensificam e a frase se repete quase automaticamente: “final de ano não tem como parar de beber”.

Dita às vezes em tom de brincadeira, às vezes como desculpa, às vezes como cansaço legítimo. É verdade que o final de ano dificulta escolhas. Há mais convites, mais encontros, mais estímulos, mais lembranças, mais expectativas. Mas dificuldade não é impossibilidade — e, sobretudo, não elimina a responsabilidade pelas próprias decisões.

Este texto não parte da exigência da sobriedade perfeita nem da negação da realidade. Parte do adulto possível: daquele que reconhece limites, assume escolhas e decide — parar, reduzir ou ao menos não se enganar.

 

ADULTECER É PARAR DE COLOCAR A DECISÃO NA CONTA DOS OUTROS

Ser adulto não é fazer sempre o que é ideal.

É reconhecer o que se faz — e porque se faz — sem transferir isso para o calendário, para a família, para os amigos ou para a cultura.

O álcool ocupa um lugar curioso na vida adulta: é socialmente aceito, amplamente incentivado e emocionalmente usado como regulador. Para quem bebe demais ou é alcoolista, isso cria uma sensação confusa de inevitabilidade, como se beber fosse menos uma escolha e mais uma consequência do contexto.

Mas há uma diferença importante entre:

— é difícil

— não tem como

O final de ano não retira a possibilidade de consciência. Ele apenas testa até onde estamos dispostos a ser honestos conosco.

 

O FINAL DE ANO NÃO CRIA O PROBLEMA. ELE ESCANCARA — E CONVIDA A OLHAR.

O álcool não se torna um problema em dezembro.

Ele apenas fica mais visível.

O final de ano amplia o que já estava ali: solidão, luto, conflitos familiares, frustrações acumuladas, sensação de tempo perdido, cansaço emocional. Para muitas pessoas, beber é uma tentativa rápida de aliviar essa sobrecarga — compreensível, ainda que ineficaz a médio e longo prazo.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), períodos festivos estão associados ao aumento do consumo de álcool e também ao aumento de acidentes, violências e agravamento de quadros emocionais. Não porque as festas sejam ruins, mas porque emocionam, pressionam e expõem.

Ao mesmo tempo, reduzir o final de ano apenas a gatilho seria injusto.

Esse período também carrega algo raro na vida adulta: uma pausa simbólica.

A rotina se quebra. O ritmo muda. O automático perde força.

Esperança, aqui, não é frase bonita. É a percepção incômoda de que algo não está como poderia estar.

Reconexão não é família perfeita. É perceber como o álcool atravessa os vínculos — às vezes anestesiando, às vezes criando ruído.

Recomeço não é virar outra pessoa em janeiro. É, muitas vezes, começar a se escutar.

UM MISTO DE SENTIMENTOS: EXCESSO, FRUSTRAÇÃO E O “PASSE LIVRE” PARA BEBER

O final de ano é feito de sentimentos misturados.

Há o desejo de fazer, em poucos dias, tudo o que não foi feito no ano inteiro. Aproveitar, viver, compensar. Como se uma semana pudesse reparar meses de frustração, adiamentos e cansaço acumulado.

Essa pressão cria uma ideia cultural poderosa: é preciso aproveitar.

E, culturalmente, “aproveitar” quase sempre passa pelo álcool.

O fim de ano oferece um tipo específico de autorização social: um passe livre — velado, mas amplamente aceito — para beber sem culpa. Um salvo-conduto emocional que só perde, em termos culturais, para o Carnaval.

Bebe-se porque é Natal.

Bebe-se porque é Réveillon.

Bebe-se porque “agora pode”.

Esse contexto não cria o alcoolismo, mas o protege do questionamento. Quem bebe raramente é interpelado; quem não bebe, muitas vezes, é.

A FRUSTRAÇÃO DE QUEM CONVIVE — E A CONFUSÃO DA CODEPENDÊNCIA

O final de ano também é difícil para quem está ao lado de quem bebe demais.

Parceiros, familiares e pessoas em dinâmica de codependência costumam reviver a mesma sequência: esperança, vigilância, tentativa de controle, frustração. A expectativa de que “dessa vez será diferente” reaparece — e frequentemente se quebra.

Há uma pergunta incômoda que quase não é feita:

quem cuida também bebe?

Às vezes bebe álcool.

Às vezes bebe tolerância excessiva.

Às vezes bebe silêncio, negação, autoabandono.

A codependência não se define apenas pela bebida na taça, mas pela dificuldade de sustentar limites e reconhecer que cada adulto é responsável pelas próprias escolhas.

O clima de festa pode silenciar ou escancarar de vez conflitos que precisariam ser nomeados.

 

PARA QUEM BEBE DEMAIS, O ÁLCOOL NÃO MUDA DE FUNÇÃO POR SER FESTA

Se você é alcoolista ou reconhece que tem bebido além do que gostaria, o álcool não se torna mais leve ou seguro porque é final de ano. O cérebro não entende datas.

Estudos do National Institute on Alcohol Abuse and Alcoholism (NIAAA) mostram que pessoas com transtorno por uso de álcool apresentam maior vulnerabilidade em contextos emocionalmente intensos e socialmente permissivos — exatamente o cenário das festas.

Isso não é julgamento.

É dado.

Não significa que você precise parar agora.

Significa apenas que o risco não desaparece porque o ambiente é festivo.

 

VERDADE SUPORTÁVEL, NÃO IDEAL IMPOSTO

Há uma frase atribuída a Nietzsche que ajuda a tirar esse tema do campo do moralismo:

“Cada um só alcança a verdade que é capaz de suportar.”

Nem todo mundo suporta, hoje, a verdade de que precisa parar completamente de beber. Forçar essa verdade costuma produzir culpa ou negação — não mudança.

Mas talvez seja possível suportar outra:

  • que o álcool tem cobrado um preço,
  • que beber não é tão livre quanto parece,
  • que continuar igual tem custo.

A mudança pode começar no suportável, não no ideal abstrato.

REDUÇÃO DE DANOS: O QUE É, DE ONDE VEM E POR QUE EXISTE

Redução de danos é uma estratégia de saúde pública reconhecida pela Organização Mundial da Saúde e pelo Ministério da Saúde do Brasil. Surgiu nas décadas de 1980 e 1990, inicialmente ligada à prevenção do HIV, e depois foi ampliada para o uso de álcool e outras substâncias.

Ela parte de um princípio simples e ético: quando a abstinência total não é possível naquele momento, reduzir riscos e sofrimento é melhor do que negar a realidade.

Redução de danos não é incentivo ao uso.

Não é romantização.

Não é o ideal para a maioria dos alcoolistas.

É o real possível.

 

REDUÇÃO DE DANOS NA PRÁTICA, PARA QUEM BEBE DEMAIS

Na prática, pode significar:

  • diminuir quantidade e frequência,
  • evitar beber em jejum,
  • intercalar com água,
  • não dirigir,
  • não misturar álcool com medicamentos,
  • observar gatilhos emocionais,
  • perceber quando o “só hoje” vira padrão.

Para muitas pessoas com alcoolismo, a redução de danos é instável e temporária. E isso não é fracasso — é informação. Muitas vezes, ela evidencia o limite do controle.

 

NÃO É MORALISMO. É MATURIDADE

Parar de beber não torna ninguém melhor.

Mas ser honesto consigo torna a vida mais inteira.

O final de ano não precisa ser o momento de parar.

Mas pode ser um bom momento para parar de se enganar.

Não por promessa.

Não por culpa.

Mas por fidelidade a si.

O QUE MUDA É A POSIÇÃO DIANTE DA PRÓPRIA VIDA

Você não precisa fazer resoluções grandiosas.

Nem se punir por quebrá-las.

Talvez baste atravessar esse período com mais consciência, menos autoengano e um pouco mais de responsabilidade por si.

Isso já é um passo importante para a superação.


Rafa Pessato

Embriague-se de si

rafapessato.eu