Gatilhos, hábito, substituição e a silenciosa engenharia da sobriedade
TSSSSHHH.
É assim que começa: com um estalo curto, úmido, metálico — o som do lacre da cerveja sendo aberto.
Um som, um convite nada silencioso. Um chamado quase corporal.
Como negar a promessa do “desce redondo”?
Como contrariar um ritual que o corpo aprendeu tão bem que, às vezes, nem precisa acontecer de verdade?
Durante anos, esse foi um dos meus gatilhos mais fortes.
Eu nem precisava ouvir o som. Bastava ver a latinha — e toda a história já se antecipava na minha mente: o som, o gosto, o ahhh depois do primeiro gole, a anestesia chegando como quem cobre o corpo com um cobertor quente em um dia gelado.
O gatilho ainda existe.
O revólver ainda é disparado.
Mas eu troquei a bala.
E, nesse movimento, descobri uma estratégia simples e poderosa para lidar com o ciclo do hábito: substituir o impulso por outra rota, outro som, outro desfecho.
No meu caso: o tsccchh de uma coca gelada.
“Ah! Mas refrigerante faz mal para a saúde”, você pode pensar. E pode ser, contudo abordarei os riscos da substituição em outro artigo.
O GATILHO É MENOR QUE O DESEJO — MAS ACENDE UM INCÊNDIO MAIOR
A adicção não começa no copo.
Começa no antes: na microcentelha que desperta algo dentro do corpo e da memória.
Pesquisas do Instituto Nacional de Abuso de Drogas dos Estados Unidos (NIDA) mostram que estímulos associados ao consumo — sons, cheiros, objetos, ambientes — ativam áreas cerebrais ligadas à memória emocional e à antecipação de recompensa.
Segundo a Administração de Serviços de Saúde Mental e Abuso de Substâncias dos EUA (SAMHSA), 60% das recaídas começam com um gatilho sensorial ou emocional aparentemente banal. Tão banal quanto o som do lacre de uma lata.
O CÉREBRO APRENDE RÁPIDO — E COBRA COM JUROS
Charles Duhigg, analisando estudos do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) sobre formação de hábitos, identificou o trio que governa nossas repetições automáticas:
- GATILHO
- ROTINA
- RECOMPENSA
Freud dizia que enquanto não tornamos consciente o que é automático, “ele dirigirá nossa vida — e nós o chamaremos de destino”. Por isso a importância de conhecer esse processo e reconhecer como ele lhe afeta.
O DESEJO NÃO NASCE NO PRESENTE: NASCE DA MEMÓRIA
O som da latinha não é apenas um som: é um gatilho narrativo.
Ele abre um arquivo cheio de cenas editadas pela memória emocional.
A memória afetiva tem mania de fazer curadoria.
Ela destaca:
— o relaxamento,
— a euforia,
— o prazer imediato.
E oculta:
— a ressaca,
— a culpa,
— as promessas quebradas.
Fernando Pessoa chamaria isso de “a ficção íntima que sustenta o viver”.
Para o alcoolista, é a ficção que sustenta o beber.
E assim passamos do funcionamento cerebral → à construção afetiva do desejo.
GATILHOS EMOCIONAIS: O QUE REALMENTE ACIONA A VONTADE DE BEBER?
A literatura científica identifica seis gatilhos universais que aumentam o risco de recaída:
- Estresse, que aciona a busca inconsciente por anestesia.
- Solidão, que segundo o Centro Americano de Tratamento de Dependências, é um dos maiores preditores de recaída.
- Fadiga emocional, quando a mente já está cansada demais para fazer escolhas conscientes.
- Euforia, que convence o cérebro de que “hoje pode”.
- Ambientes associados ao consumo, que funcionam como portais.
- Objetos simbólicos, como a latinha, o copo, a espuma.
Aqui, conectamos memória → emoção → risco.
Nada é pequeno quando ativa uma história inteira dentro da mente.
SUBSTITUIR A BALA: O PODER DA TROCA DENTRO DO HÁBITO
Chegamos ao ponto de virada.
Minha virada veio quando parei de lutar contra o gatilho e comecei a mudar o desfecho do ciclo do hábito.
Segundo a Universidade Duke, 40% dos nossos comportamentos são hábitos, não decisões. Ou seja, o corpo age no piloto automático.
Quando troquei o tssshh da cerveja pelo tssshh da coca zero, meu cérebro entendeu:
“o ritual está preservado”. Mas a consequência mudou. Esse processo consiste em “enganar” o cérebro antes que ele “engane” você.
Winnicott chamaria isso de “adaptação suficientemente boa”.
Para mim é estratégia de sobrevivência a qual permite não depender da força de vontade; pois ela não salva.
O que salva é mudar a narrativa: do risco dos gatilhos → à possibilidade da reinvenção.
O CORPO CONTINUA QUERENDO — MAS APRENDE NOVOS CAMINHOS
A neurociência mostra que novas rotas neurais se fortalecem com repetição.
Ou seja, a repetição cria trilhas.
Trilhas viram caminhos.
Caminhos viram escolhas espontâneas.
No começo, abrir uma lata de refrigerante, quando na realidade se desejava uma cerveja, pode parecer um teatro.
Mas se bem desempenhado, vira hábito e, enfim, proteção.
Simone de Beauvoir escreveu:
“Somos feitos das escolhas que fazemos — e das que recusamos.”
Cada substituição é uma recusa ao velho eu.
Agora ligamos hábito → repetição → plasticidade cerebral.
E QUANDO O GATILHO EMOCIONAL É INTERNO?
Nem sempre o gatilho é externo.
Às vezes é:
- a sensação de inadequação,
- uma memória súbita,
- o silêncio de uma noite longa,
- o medo de ser quem se é sem anestesia.
Viktor Frankl nos lembra que “entre o estímulo e a resposta há um espaço”.
A sobriedade vive nesse espaço.
E aprender a ampliá-lo é uma prática diária.
Aqui conectamos plasticidade → profundidade emocional.
O GATILHO CONTINUA — MAS VOCÊ APRENDE A NÃO OBEDECER
O revólver interno não some.
Os gatilhos não desaparecem.
Mas você aprende:
- A identificar,
- a descarregar,
- a travar,
- a redirecionar,
- ou a trocar a bala.
O refrigerante virou minha bala nova — e isso não me fez fraca.
Me fez hábil.
Aqui a transição é clara:
do interno → à resposta prática.
O EQUÍVOCO DO “EU DEVERIA CONSEGUIR SEM SUBSTITUIÇÕES”
A ciência comportamental afirma: substituir é uma das estratégias mais eficazes para quebrar padrões compulsivos.
Não é muleta.
É ponte.
Não é fragilidade.
É engenharia emocional.
Cecília Meirelles nos oferece a imagem perfeita:
“Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta.”
E às vezes, a liberdade começa num gesto tão simples quanto abrir outra latinha.
QUANDO O DESEJO ACENDE — NÃO É O FIM; É O COMEÇO DA ESCOLHA
O som do lacre ainda acende algo.
E sempre acenderá.
Mas hoje, ele não decide por mim.
Eu decido por ele.
Leminski disse:
“Isso de querer ser exatamente aquilo que a gente é ainda vai nos levar além.”
E é isso que a sobriedade faz: não elimina o desejo, mas amplia o “além”.
Rafa Pessato
Embriague-se de si











