Quem viveu anos tentando controlar a bebida — dos “só hoje” aos “amanhã eu paro” repetidos como mantra exausto — sabe que a dependência química tem uma lógica própria, quase um sistema nervoso paralelo. Ela rouba o olhar, reorganiza prioridades e estreita o mundo. Quando finalmente chega a sobriedade, não há fogos de artifício, nem uma iluminação mística. Há, antes, uma espécie de retorno. Uma possibilidade de ver o que sempre esteve à disposição, mas que o álcool borrava, distorcia ou anulava. São pequenas alegrias que, paradoxalmente, só se desvelam depois que se abandona aquilo que parecia ser o único conforto.
O alcoolista em processo de recuperação costuma relatar esse fenômeno com surpresa: “parece que ganhei novos olhos”. Não é exagero. A neurociência confirma que, após semanas e meses de abstinência, regiões do cérebro relacionadas ao prazer, sensibilidade emocional e atenção plena começam a se reequilibrar. O cérebro volta a registrar micro-satisfações que antes eram insignificantes diante do estímulo químico avassalador. A dopamina deixa de ser refém da bebida e retorna ao ciclo natural.
Essas pequenas alegrias são, portanto, mais do que detalhes. São indicadores de que a vida voltou a se mover. São sinais clínicos, simbólicos e existenciais de que algo dentro do sujeito está reencontrando seu próprio eixo. Não são recompensas no sentido moral, mas marcos de presença. O extraordinário revela-se não por ser grandioso, mas por ser real.
A PRIMEIRA ALEGRIA: ACORDAR SEM LEMBRANÇAS EM FRAGMENTOS
A maioria dos alcoolistas sabe o que significa “memória fragmentada”. Acordar e tentar reunir pedaços do que aconteceu na noite anterior: o que foi dito, o que foi feito, quem foi magoado, quem foi usado como espelho para a própria fuga. A sobriedade devolve algo que parece banal, mas é profundamente transformador: acordar inteiro.
Acordar com memória íntegra é um presente. É a restituição de uma função psíquica fundamental: ser responsável pelas próprias escolhas. Na clínica, observamos que essa integridade da lembrança cria um efeito dominó. Sem lapsos, o sujeito pode reconstruir uma narrativa própria, e é a partir dessa narrativa que nasce o sentido. Viktor Frankl já apontava: a vida só pode ser assumida quando ela pode ser contada.
Essa primeira alegria não é romântica. É simples, mas libertadora: lembrar-se de si mesmo.
A VOLTA DO CORPO: SONO, FOME, ENERGIAS QUE DEIXAM DE SER INIMIGAS
Durante anos de uso, o alcoolista vê o próprio corpo como adversário. Há tremores, palpitações, alterações de humor, insônia, ressaca emocional, ressaca física, a oscilação entre hiperexcitação e exaustão. A sobriedade devolve o corpo, mas não de uma vez.
O sono passa a se regular gradualmente, muitas vezes após semanas difíceis. A relação com a comida volta a se manifestar de maneira natural. A energia, antes artificialmente produzida pelo álcool e destruída por ele, reaparece em doses compatíveis com a vida real.
O extraordinário aqui está no que parecia banal: sentir fome pela manhã, dormir por saturação natural, caminhar sem medo de que o coração dispare. A neurociência explica: aos poucos, os hormônios e os neurotransmissores — como dopamina e serotonina — começam a voltar ao ritmo normal. Mas, do ponto de vista existencial, acontece algo maior — recuperar o corpo é recuperar a casa que habitamos. É voltar a ser alguém que sente.
É curioso como muitos relatam: “eu não sabia que me sentia tão mal até começar a me sentir bem”. A pequena alegria está na descoberta de que viver no próprio corpo é possível.
A ROTINA COMO ABRIGO E NÃO COMO PRISÃO
O alcoolismo transforma a rotina em algo insuportável. Dias normais tornam-se ameaças: o alcoolista teme o vazio, o tédio, o silêncio. A sobriedade, porém, permite que a rotina seja reinterpretada.
O simples ato de ter um horário para acordar, trabalhar, comer, descansar e dormir sem rupturas abruptas deixa de parecer um castigo e torna-se um ponto de sustentação. Winnicott dizia que a previsibilidade do cotidiano é o que permite ao sujeito criar espontaneidade. Uma estrutura não limita; ela sustenta.
A pequena alegria é descobrir que uma segunda-feira pode ser suportável. Que um dia comum não é um obstáculo a ser ultrapassado para chegar à hora da bebida. Que a vida entre manhã e noite pode ser habitada.
OS PRIMEIROS SINAIS DE PRESENÇA
Parar de beber não devolve imediatamente profundidade emocional, mas desbloqueia a possibilidade de notá-la. Aos poucos, coisas simples — uma luz batendo na mesa, o barulho da água fervendo, o riso de alguém querido — voltam a ser percebidas.
A presença, para a psicanálise e a filosofia existencialista, não é um estado iluminado, mas um ato contínuo de voltar-se para a realidade sem se anestesiar diante dela. O alcoolista, que por anos fugiu da própria interioridade, começa a sustentar o olhar por segundos a mais. Esses segundos são ouro.
A alegria aqui também não é romântica. É microscópica. É o cérebro registrando estímulos antes invisíveis, como se o cenário da vida tivesse sido reacendido.
É a descoberta de que existe beleza no intervalo entre um pensamento e outro.
O PRIMEIRO RISO GENUÍNO
Há um riso típico da intoxicação: expansivo demais, rápido demais, sem raiz. Ele vem para aliviar tensões e, ao mesmo tempo, esconder dores.
Na sobriedade, o riso pode demora a aparecer para alguns. E quando aparece, ele assusta — porque é real. Muitas pessoas em recuperação relatam: “eu ri e percebi que estava realmente ali, sem estar anestesiado”.
Esse riso não precisa de plateia, nem de motivo extraordinário. Ele vem de algo que faz sentido, de um reconhecimento interno.
É uma pequena alegria que sinaliza reintegração psíquica: a capacidade de sentir prazer sem a mediação química.
A LIBERDADE DE NÃO PRECISAR EXPLICAR A SI MESMO
Um dos fardos mais pesados do alcoolismo é a quantidade de desculpas inventadas. Justificativas para ausências, atrasos, comportamentos impulsivos, promessas não cumpridas.
Na sobriedade, emerge uma grande liberdade: não precisar mentir. Não precisar reconstruir narrativa, esconder garrafas, inventar histórias.
Essa alegria é frequentemente subestimada. Mas clinicamente, ela representa a retomada da autenticidade — uma das dimensões mais fundamentais da saúde mental. Soren Kierkegaard já dizia que o desespero surge quando o sujeito se afasta do que realmente é.
A sobriedade, nesse sentido, devolve dignidade. Devolve verdade. Devolve chão.
O PRIMEIRO CONTROLE DE IMPULSO: DIZER “NÃO”
Quando o alcoolista passa pelo primeiro grande gatilho emocional sem beber, algo interno muda de patamar. Não é uma conquista exibida ao mundo; é íntima. É a descoberta de que é possível suportar a vida sem recorrer à autodestruição.
Esse “não” é um marco. Não um triunfo heroico, mas um reorganizador interno. A neurociência explica: o cérebro começa a recuperar eficiência de tomada de decisão, regulação emocional e antecipação de consequências.
A pequena alegria aqui é perceber que a sobrevivência não depende mais da bebida.
É sentir que existe um “eu” que pode escolher.
REDESCOBRIR O SILÊNCIO — E PERCEBER QUE ELE NÃO MATA
Muitos alcoolistas temem o silêncio. Temem o peso da própria mente, o encontro com a própria história. A sobriedade, gradualmente, ensina que o silêncio não é inimigo, mas espaço.
Silêncio permite perceber emoções tênues, identificar medos, elaborar ideias. Permite ouvir o próprio corpo, o próprio pensamento, a própria necessidade.
A pequena alegria está em perceber que o silêncio não precisa ser preenchido com intoxicação. Ele pode ser habitado. Ele pode até aconchegar.
RECONCILIAÇÕES DISCRETAS
O alcoolismo endurece relações. Provoca distanciamentos, feridas, mal-entendidos. Quando o alcoolista conquista sobriedade, essas relações não se curam magicamente. Mas começam a descongelar.
Há olhares novos, conversas possíveis, gestos mínimos que indicam confiança renascendo. São micro-reparações que, somadas, reconstituem vínculos.
Na clínica, observamos que essas reconciliações discretas são uma das maiores fontes de motivação para continuar sóbrio — não por culpa, mas por amor. Amor-próprio, amor pelos outros, amor pela vida que se quer construir.
A ALEGRIA MAIOR: PERCEBER-SE CAPAZ DE SENTIR NOVAMENTE
Se há um fio condutor entre todas essas pequenas alegrias, é este: a capacidade de sentir retorna.
Sentir o corpo, sentir o tempo, sentir o mundo, sentir as relações, sentir o silêncio, sentir a si mesmo.
A sobriedade não transforma a vida em festa contínua. Ao contrário: permite que o sujeito perceba nuances, limites, fragilidades, alegrias, dores, fôlego. Permite que exista uma textura emocional, algo que o álcool apagava.
Essa capacidade de sentir é o que, de fato, torna o ordinário extraordinário. Não porque as coisas mudaram tanto assim, mas porque agora há alguém presente o suficiente para percebê-las.
A VIDA RETORNA NAS ENTRELINHAS
Quando um alcoolista para de beber, o mundo não se torna imediatamente brilhante. Mas se torna possível. E dentro dessa possibilidade, pequenos presentes começam a aparecer. Presentes que não vêm embrulhados: vêm na forma de percepção, de lucidez, de dignidade, de tempo recuperado.
Essas pequenas alegrias são indicadores de que o sujeito está retornando para si. São a prova concreta — clínica, existencial e humana — de que a vida continua acessível mesmo depois de anos de autodestruição. E que, em muitos casos, ela nunca esteve tão acessível quanto agora.
A sobriedade não é um prêmio literal. É uma abertura. Uma forma de caminhar.
E, nesse caminho, o extraordinário sempre esteve escondido no que parecia apenas comum.
Rafa Pessato
Especialista em Autoconhecimento e Comportamento











