Desconforto: substantivo masculino. Falta de conforto; incômodo, desalento, desânimo. (Dicionário Michaelis).
Parece simples, não parece? Uma palavra aparentemente modesta, que caberia numa conversa de bar, mas que se transforma numa muralha quando falamos de alcoolismo. Porque, para o alcoolista que tenta viver sem o álcool, o desconforto não é só a ausência de conforto: é presença de tudo que o álcool empurrava para baixo do tapete.
Digo com propriedade não apenas de profissional, mas de quem bebeu por décadas e está sóbria desde 2018: viver sem álcool, sobretudo no início da sobriedade, é profundamente desconfortável. Não é um incômodo leve, desses que você resolve trocando de roupa ou abrindo uma janela. É um estranhamento existencial. Um corpo embaralhado. Uma mente sem referências. Um emocional atravessado por ruídos que sempre foram silenciados na bebida.
Não é sofrer por sofrer. Não é masoquismo. Não é falta de fé. É a psique entendendo que perdeu sua anestesia diária.
E é justamente por isso que tantos tentam fugir do desconforto. Fugir dele é quase instintivo. Só que, para o alcoolista, fugir do desconforto quase sempre significa voltar ao álcool — ou, no mínimo, trocar de vício e abrir a porta para o risco de dependência cruzada. A literatura científica é clara: quando a pessoa abandona a substância sem trabalhar o que estava por trás dela, o cérebro tende a buscar outro objeto para regular as emoções (SAMHSA, 2021).
Há quem recorra a comida, jogo, pornografia, compras, redes sociais, relacionamentos compulsivos. Há quem vá para a academia como se estivesse fugindo de si mesmo — e isso parece positivo à primeira vista (e ao longo prazo pode ser – e isso é tema para outro artigo). O problema nunca é o objeto. É a tentativa de não sentir.
Clarice Lispector escreveu: “Eu não sou tão forte quanto penso, mas também não sou tão fraca quanto imagino.” Essa frase descreve perfeitamente o alcoolista diante do desconforto: nem tão capaz de aguentar tudo sozinho, nem tão incapaz quanto acreditou ser.
O QUE É ESSE DESCONFORTO, AFINAL?
Do ponto de vista clínico e existencial, não é apenas abstinência. É luto. Um luto profundo — não apenas pela substância, mas pela identidade que ela ajudou a construir.
O álcool dá ao alcoolista uma persona: o sociável, o forte, o engraçado, o que aguenta tudo, o que relaxa rápido, o que “não tem tempo pra frescura”. Retirar o álcool é retirar o personagem — e ficar cara a cara com alguém que talvez você não conheça tão bem.
Freud dizia que, quando uma defesa cai, tudo o que ela segurava aparece de uma vez.
E é assim que o alcoolista se sente sem o álcool: como se todas as emoções represadas invadissem o corpo ao mesmo tempo. Não porque são novas, mas porque, finalmente, não há nada amortecendo.
A neurociência confirma: o alcoolismo causa hipodopaminergia — uma redução na dopamina natural (Koob & Volkow, 2016). Sem álcool, o cérebro demora para retomar o próprio equilíbrio. Essa demora é percebida como:
• irritação,
• vazio,
• ansiedade,
• fadiga,
• apatia,
• falta de prazer.
Ou seja: o desconforto tem fundamento biológico, psíquico e existencial.
Não é frescura.
Não é “mente fraca”.
É química. É história. É dor acumulada.
A METÁFORA DO SAPATO: AGORA NUM LUGAR MAIS PROFUNDO
Imagine a seguinte cena: você veste diariamente um sapato lindíssimo. Ele é elegante, combina com tudo, faz você se sentir alinhado. Todos elogiam. Você acredita que foi feito para ele — ou que ele é parte da sua personalidade.
Mas o sapato aperta. Aperta há anos. Aperta tanto que você nem percebe mais que dói. Você normalizou a ferida. Você aprendeu a andar mancando sem admitir.
O álcool é esse sapato.
Quando você finalmente decide tirá-lo, não sente alívio imediato. Sente estranheza. O pé parece torto. O chão parece mais duro. O ar parece frio demais.
E aí alguém diz:
“Coloca esse outro sapato aqui.”
Só que o sapato novo não tem estilo. Não te traz glamour. Não te dá o “clique” que o outro dava.
Sobriedade é isso: um sapato mais confortável que pode parecer feio no começo — porque você nunca experimentou conforto de verdade.
E é por isso que tantas pessoas querem voltar ao sapato apertado. Porque o que é familiar parece mais confortável do que o que é saudável.
Mas quando você insiste, quando deixa o pé reaprender o próprio formato, chega um momento de revelação: o sapato novo não machuca. O antigo podia até ser bonito, mas te destruía.
Kierkegaard dizia que “a angústia é o vértice da liberdade”. A troca do sapato apertado é exatamente isso: o ponto mais alto que indica que você finalmente se libertou.
POR QUE SUSTENTAR O DESCONFORTO É TÃO IMPORTANTE?
Porque dele nasce tudo o que você sempre buscou no álcool — só que de maneira mais natural e verdadeira.
Sustentar o desconforto é um exercício de reconstrução psíquica. Não é castigo, não é penitência, não é algo “que você merece sofrer”.
É o processo natural de retirar a anestesia que abafava:
• emoções,
• limites,
• medos,
• frustrações,
• desejos,
• sonhos,
• raivas,
• inseguranças.
Sustentar o desconforto é sustentar você.
Sem filtro.
Sem personagem.
Sem truque químico.
É por isso que Viktor Frankl dizia que quando uma dor ganha sentido, ela deixa de ser punição e passa a ser caminho. Não porque a dor desapareça, mas porque você finalmente entende para onde ela está te levando. O desconforto da sobriedade funciona exatamente assim: ele dói, mas dói a serviço da vida. Pois a sobriedade é travessia.
E o desconforto é a ponte.
Se você recua, volta ao mesmo lugar.
Se atravessa, chega a um território onde a vida finalmente cabe no corpo.
SEM DESCONFORTO, NÃO HÁ SOBRIEDADE VERDADEIRA
A recaída acontece quando o desconforto vira pânico — quando o alcoolista acredita que aquilo que sente é insuportável.
Mas não é.
É intenso.
Mas não insuportável.
É desgastante.
Mas não eterno.
O desconforto tem prazo.
A dependência não.
Quem sustenta o desconforto supera a fase em que a dor parece maior do que o desejo de viver. E descobre algo que o álcool nunca ofereceu: autenticidade.
Fernando Pessoa dizia: “Tudo vale a pena se a alma não é pequena.”
Talvez a sobriedade seja o momento exato em que você descobre que sua alma não é pequena — só estava anestesiada.
SUSTENTAR O DESCONFORTO É SUSTENTAR A POSSIBILIDADE DE EXISTIR
Nenhum alcoolista se arrepende do desconforto sustentado.
Só se arrepende do desconforto interrompido — aquele que leva de volta ao copo, ao trago…
Sustentar é atravessar.
Sustentar é reorganizar.
Sustentar é permitir que o “eu” deixe de ser sobrevivente para virar protagonista.
O desconforto é incômodo, sim.
Mas é honesto.
E tudo o que é honesto ressignifica (“cura”).
O álcool conforta rápido, mas machuca devagar.
A sobriedade desconforta no início, mas transforma.
E você merece isso.
Rafa Pessato
Especialista em Autoconhecimento e Comportamento











