Há um instante — sempre há — em que a pessoa percebe que já não está no comando. O copo que prometia “alívio”, o gole que parecia um intervalo, a rotina que começou como um escape inocente… tudo isso de repente se torna o centro de gravidade da vida. Há um ponto silencioso e devastador em que o álcool, o cigarro, a comida, o sexo, o trabalho, as telas, o amor obsessivo — qualquer coisa capaz de servir de anestesia — deixam de ser escolhas e passam a ser molduras da própria identidade.
E ninguém percebe isso num dia só. A gente vira dependente devagar. Antes que o vício se instale, surgem os excessos.
E antes dos excessos, surgem as faltas: falta de autonomia emocional, falta de limites internos e externos, falta de autoestima, falta de acolhimento afetivo, falta de pertencimento, falta de sentido e propósito, falta de regulação emocional, falta de estrutura interna, falta de elaboração de traumas, falta de validação, falta de segurança emocional, falta de identidade integrada e falta de práticas diárias que sustentem equilíbrio e autocuidado.
As faltas são antigas, às vezes herdadas, às vezes construídas; às vezes tão íntimas que parecem parte da ossatura. O excesso, curiosamente, tenta tapar essas brechas com pressa, como quem apaga um incêndio com gasolina.
E é assim que começa a mudança na identidade: não porque alguém quis se tornar dependente, mas porque a compulsão se apresenta como o refúgio mais rápido para um corpo e uma mente cansados demais para questionar.
O PESO INVISÍVEL DOS EXCESSOS
A ciência tem um modo direto de dizer aquilo que o dependente vive na pele: o cérebro adora caminhos fáceis. A dopamina que vem do álcool e das drogas não é apenas prazer — é direção. Quanto mais você repete um comportamento que alivia ansiedade, tristeza ou vazio, mais o cérebro registra que esse é o jeito certo de sobreviver ao dia.
O problema é que sobreviver é bem diferente de viver.
Pesquisas recentes mostram que comportamentos compulsivos alteram a forma como o córtex pré-frontal funciona — justamente a região responsável por tomada de decisão, autocontrole, planejamento e capacidade de dizer “não”. É como se o cérebro reorganizasse prioridades: primeiro vem o alívio. Depois, tudo o resto.
E quando o alívio vira prioridade, a identidade se reorganiza com ele. Você deixa de ser “alguém que bebe” para ser “alguém que só funciona se beber”. Você deixa de ser “alguém que trabalha muito” para ser “alguém que precisa trabalhar para não desmoronar”. Você deixa de ser “alguém que ama demais” para ser “alguém que se perde em qualquer relação”.
O excesso vira método.
A compulsão vira mapa.
E o vício vira casa.
Uma casa apertada, sufocante, mas conhecida.
QUANDO O EXCESSO MUDA O ESPELHO
O vício não altera apenas comportamento — ele mexe no retrato interno, naquele lugar secreto onde você guarda a ideia do que é ser você. É por isso que muitos alcoolistas dizem frases como:
“Eu não sei quem sou sem beber.”
“Só sou engraçado(a) depois de alguns copos.”
“Fico menos travado(a) quando bebo.”
“Só relaxo se tiver álcool.”
“Eu me gosto mais quando estou alterado(a).”
Percebe a tragédia? O sujeito deixa de existir sem a substância. E isso acontece porque, aos poucos, o excesso sequestra traços de personalidade, desconfigura valores, enfraquece limites e instala um vazio que só ele mesmo promete preencher. É um círculo vicioso, um pacto silencioso com a própria sombra.
Nietzsche insinuava que o ser humano inventa distrações para fugir de si. Freud dizia que encontramos substitutos para dores que não sabemos nomear. Frankl lembrava que, quando falta sentido, qualquer estímulo vira anestesia. Clarice sussurrava que o perigoso não é o que sentimos, mas o que evitamos sentir.
No fundo, todos falavam da mesma coisa: a compulsão nasce onde a dor não encontra linguagem. E onde não há linguagem, há excesso.
EXCESSO: SINTOMA, DEFESA, PRISÃO
A pessoa dependente não busca destruição. Ela busca alívio. Mas o alívio contínuo enfraquece o eu que deveria crescer.
O excesso funciona como:
• sintoma — revela um conflito interno não resolvido
• defesa — protege o sujeito de dores que ele acredita não suportar
• prisão — aprisiona quando vira padrão, hábito, necessidade
O álcool entra aqui com força: ele reduz a ansiedade, desarma a vergonha, silencia a autocobrança. Funciona rápido. Funciona sempre. Funciona até destruir. E o mais cruel: o vício destrói o mesmo sujeito que tenta proteger.
É como usar fogo para se aquecer e acabar queimado.
A IDENTIDADE VICIADA: UMA ADAPTAÇÃO DOLOROSA DE SI
Um alcoolista raramente percebe que está mudando. O humor muda. As prioridades mudam. O corpo muda. A mente muda. O sono, a fome, o desejo, as relações… tudo muda.
E aquilo que antes era traço passa a ser distorção:
• o tímido vira isolado
• o empático vira codependente
• o criativo vira instável
• o disciplinado vira obsessivo
• o amoroso vira carente
• o espontâneo vira impulsivo
Não porque a pessoa “não presta”, mas porque o excesso sequestra a parte mais luminosa da identidade e devolve apenas o necessário para manter o ciclo funcionando.
O dependente não perde tudo. Ele perde o acesso a quem era. E isso é, talvez, a dor mais funda da dependência.
COMEÇAR A SE LIBERTAR: O RETORNO AO QUE É AUTÊNTICO
Libertar-se de um vício é, antes de tudo, um processo de reaprender a existir sem excessos. Não é só parar de beber. É reaprender a ser.
E isso exige:
1. Coragem para olhar o que o excesso encobria.
Sem romantizar a dor, mas sem continuar fugindo dela.
2. Capacidade de suportar o desconforto de ser você sem anestesia.
O primeiro mês de sobriedade não é sobre leveza — é sobre reconstrução.
3. Trocar o alívio rápido por sentido verdadeiro.
Não é fácil. Mas é o único caminho.
4. Recuperar forças de caráter adormecidas.
Equilíbrio, autocontrole, humanidade, coragem, sabedoria.
Não como conceitos, mas como músculos.
5. Aprender a conviver com o vazio.
O vazio não mata.
O que mata é o excesso usado para fugir dele.
6. Reescrever a própria narrativa.
Não para negar o passado, mas para não ser refém dele.
A autenticidade, aqui, não é uma promessa abstrata. É o estado em que você finalmente consegue existir sem depender de um estímulo químico ou comportamental para se sentir inteiro.
E isso não é utopia. É decisão. É prática. É constância. É vida real.
VOCÊ NÃO É O SEU EXCESSO
O excesso é barulhento, invasivo, dominador. Ele te convence de que é parte da sua essência, quando na verdade é só um capítulo barulhento da sua história.
Você não é o gole que te derruba.
Você não é a recaída que te envergonha.
Você não é a compulsão que te prende.
Você não é o excesso que te rouba de você.
Você é o que fica quando tudo isso cai. E, acredite: sobra muito mais do que você imagina.
O processo de sobriedade não devolve o “antigo você”. Ele revela o verdadeiro você — aquele que nunca teve espaço para existir enquanto o excesso ocupava tudo. E, quando esse “você” aparece, até a dor ganha outro sentido: ela deixa de ser inimiga e passa a ser bússola.
A vida autêntica não começa quando o vício acaba. Ela começa quando você decide se ver com mais verdade. E essa decisão — um pouco desesperada, um pouco corajosa — é sempre o primeiro gesto de liberdade.
Rafa Pessato
Especialista em Autoconhecimento e Comportamento











