Há um certo silêncio que chega quando o copo se esvazia — não de bebida, mas de sentido.
Quem já tentou parar de beber sabe: a sexta-feira tem cheiro de tentação. Uma parte da mente até entende o fim da semana, mas outra ainda confunde descanso com descontrole. É um vazio conhecido: o bar que chamava o nome, os risos altos, o copo na mão que parecia identidade. Parar de beber é reaprender a existir no sábado de manhã — com memória, com lucidez, com o próprio corpo presente.
Durante muito tempo, o álcool foi o ritual da pausa. O sinal verde para se desligar do peso da semana, da rotina, das cobranças. E de repente, sem ele, tudo parece sem graça. É comum ouvir: “fiquei sem saber o que fazer com o tempo livre”. Porque a dependência não é só química; é comportamental, emocional e simbólica. O álcool vira um organizador da vida — um ponto de encontro, uma desculpa para o prazer, um álibi para o tédio. Quando ele sai, a rotina precisa ser reconstruída.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de 283 milhões de pessoas no mundo sofrem com o uso nocivo do álcool. No Brasil, o Levantamento Nacional sobre o Uso de Álcool e Outras Drogas (Fiocruz, 2023) apontou que uma em cada quatro pessoas que bebe, o faz de modo abusivo. Mas entre os que decidem parar, a maioria relata a mesma sensação: o vazio dos primeiros finais de semana. E é nesse vazio que nasce a chance de se reinventar.
O VAZIO NÃO É PUNIÇÃO. É ESPAÇO NOVO.
O primeiro impulso é preencher o buraco que o álcool deixou. Trocar o bar pela academia, o vinho pela sobremesa, a ressaca pela produtividade. Mas essa pressa é outra forma de fuga.
O verdadeiro processo de sobriedade começa quando você se permite não saber o que fazer, quando encara o tédio sem tentar anestesiá-lo. Winnicott diria que o brincar nasce justamente no espaço entre o vazio e a criação. É ali que você começa a construir novos sentidos, não a copiar os antigos.
Há um equívoco comum: achar que o prazer sem álcool precisa ser intenso, performático, digno de feed. Mas o prazer sóbrio nasce da presença — e a presença não tem roteiro.
Pode ser uma caminhada no fim da tarde, um café demorado, o som da chuva, o riso dos filhos, o cheiro do pão que você mesmo fez. O prazer não precisa mais vir embalado em copos gelados ou em euforia alugada.
A DESINTOXICAÇÃO É TAMBÉM SENSORIAL
O corpo de quem bebia muito demora a desacostumar da excitação constante. Dopamina, serotonina, endorfinas — tudo foi condicionado ao álcool. Sem ele, o organismo estranha. É por isso que o começo da sobriedade pode parecer sem cor.
Mas a boa notícia é que o cérebro se reconstrói. Estudos da Escola de Medicina de Harvard mostram aumento da atividade no córtex pré-frontal (área da tomada de decisão e autocontrole) em poucas semanas de abstinência. A sobriedade devolve a capacidade de escolher.
E quando a escolha é consciente, o prazer deixa de ser automático. Você começa a perceber nuances sutis: o gosto real da comida, o toque das coisas, o tempo que se alonga. A intoxicação anestesia. A sobriedade desperta.
O FINAL DE SEMANA COMO ESPAÇO DE RECOMEÇO
O fim de semana é simbólico: é quando o mundo desacelera, e o dependente sente ainda mais o impulso de correr para a substância ou comportamento adictivo. É quando o “eu do álcool” volta a sussurrar: “só hoje, você merece”.
Por isso, reconstruir esse tempo é vital. Trocar ambientes, criar novos rituais, inventar significados. Se antes o bar era refúgio, agora pode ser o parque. Se antes o prazer era o porre, agora pode ser o encontro.
Mas nada precisa ser perfeito. A autenticidade da sobriedade não está em virar atleta, espiritualizado ou exemplar. Está em ser alguém que decide viver — com os próprios sentidos limpos, com as dores sem anestesia, com o prazer sem fuga.
Nietzsche escreveu que “é preciso ter um caos dentro de si para dar à luz uma estrela dançante”.
Talvez seja isso o que a sobriedade faz: transforma o caos do vício em movimento de vida.
DA EUFORIA À AUTENTICIDADE
O álcool oferece alívio, mas rouba sentido. Ele dá coragem, mas tira verdade.
E no fundo, todo alcoolista sabe: a euforia é curta, a culpa é longa. O prazer é emprestado.
A sobriedade, ao contrário, não é um estado de tédio, mas de reconciliação. É quando o corpo e a mente se reencontram. Quando o riso não precisa ser alto para ser real. Quando o silêncio não incomoda mais.
Reinventar o prazer do fim de semana é se permitir um tipo novo de alegria: a que não termina no domingo com arrependimento.
É redescobrir o simples — o sol batendo na janela, a cama arrumada, a conversa que flui sem tropeçar em copos.
A sobriedade não é o oposto da festa. É o retorno à presença.
E a presença é o maior prazer que existe.
“É no brincar, e talvez apenas no brincar, que o indivíduo pode ser criativo e usar sua personalidade integral.” (D.W. Winnicott)
A ALEGRIA QUE FICA
No começo, parece que o mundo ficou pequeno.
Mas com o tempo, você percebe: era o álcool que estreitava seus horizontes.
O “sextou sem ressaca” não é um castigo — é um convite.
A cada fim de semana, você escolhe o que quer lembrar.
A sobriedade não rouba o prazer; devolve o controle.
E o verdadeiro prazer é aquele que não cobra juros no dia seguinte.
Rafa Pessato
Especialista em Autoconhecimento e Comportamento











